Do Éden ao Congresso: a teologia do domínio e a busca pelo poder cristão
- Gedeon Lidório
- há 6 dias
- 5 min de leitura
Parte 1
Isso tem um nome: Teologia do Domínio.
A Teologia do Domínio é uma corrente dentro do cristianismo que ensina que os cristãos foram chamados por Deus não apenas para viver uma fé pessoal e pública, mas para exercer influência — e até liderança e controle — em áreas como política, educação, economia, cultura e mídia. Essa ideia parte do princípio de que Deus concedeu à humanidade o “domínio” sobre a Terra (Gênesis 1:28) e que, portanto, os cristãos devem trabalhar para que os valores bíblicos moldem toda a sociedade.

Não há nada de mal em pensar e agir para que o máximo de pessoas no mundo conheçam a Deus e mudem suas vidas, suas estruturas e as estruturas que fazem parte – essa é a vontade de Deus para o cristão – ser testemunha e fazer discípulos. Porém, quando falamos da Teologia do Domínio estamos fadados a falar sobre poder e controle – dominação.
A questão não é a pregação do evangelho e a conversão de pessoas, mas o objetivo disso – se o objetivo é que a glória de Deus encha a terra como as águas cobrem o mar (Habacuque 2.14) é algo maravilho – mas se objetivo tem a ver com os projetos personalíssimos de poder, controle e domínio, aí já estamos escutando a voz do inimigo de nossas almas e não de Deus.
Deus não precisa, em absoluto, que o coloquemos no trono e no controle de tudo no mundo – ele já é SENHOR absoluto de todas as coisas.
Em muitos contextos, essa teologia tem sido usada para justificar a atuação política de igrejas, o envolvimento direto de líderes religiosos em governos e até a tentativa de transformar princípios religiosos em leis civis. Entender o que está por trás da Teologia do Domínio nos ajuda a refletir sobre os limites entre fé, poder e democracia — e sobre como a religião pode contribuir para o bem comum sem se tornar instrumento de dominação.
De onde vem isso?
A chamada Teologia do Domínio tem sido, nas últimas décadas, tema de intenso debate entre teólogos, líderes religiosos e estudiosos das relações entre religião e política. Fundamentada principalmente na interpretação de Gênesis 1:26–28 — onde Deus confere ao ser humano o mandato de “dominar” sobre a criação — essa teologia defende que os cristãos foram chamados não apenas a exercer influência espiritual, mas também a governar as estruturas sociais, culturais, políticas e econômicas do mundo. Note uma questão importante já de cara: no Gênesis é o ser humano (todos nós) que somos colocados no mandato cultural de “dominar” (controle e proteção) a criação. Na Teologia do Domínio isso acaba sendo uma exclusividade do cristão.
Embora suas raízes remontem à interpretação do mandato cultural dado à humanidade no relato da Criação, a Teologia do Domínio, em suas formas mais desenvolvidas, passou a se consolidar principalmente a partir dos movimentos reconstrucionistas e pós-milenistas do século XX, com autores como R.J.
Rushdoony e Gary North, que propuseram uma reinterpretação das esferas públicas à luz da lei bíblica. No contexto contemporâneo, essa teologia ganhou novos contornos através do movimento das Sete Montanhas de Influência (tem um outro movimento aí que evoca a questão da montanha também, será coincidência?!) especialmente em ambientes pentecostais e carismáticos, propondo uma atuação cristã direta e estratégica em áreas como governo, mídia, educação, economia e cultura, na tentativa de controle.
O crescente engajamento de segmentos evangélicos com pautas políticas e culturais tem reavivado o interesse (e a polêmica) em torno da Teologia do Domínio, especialmente quando ela se associa a projetos de poder institucional e visões triunfalistas do Reino de Deus.
Há uma linha muito tênue entre instrumentalizar a fé para fins políticos, e a obediência legítima ao chamado bíblico de transformar o mundo pela Palavra de Deus.
Essa passagem de Gênesis 1:26–28 tem sido interpretada por muitos teólogos como uma autorização divina para a administração responsável da criação. No entanto, dentro da Teologia do Domínio, essa prerrogativa é expandida para incluir a ideia de que os cristãos têm o dever de exercer autoridade — espiritual, cultural e até política — sobre todas as esferas da sociedade.
“E Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, e sobre todo animal que se move sobre a terra.” (Gênesis 1:28)
O mandato cultural
No pensamento cristão reformado, especialmente com Abraham Kuyper, o mandato cultural é visto como a base para a atuação transformadora do cristão no mundo. Kuyper falava de "esferas de soberania", onde o senhorio de Cristo deveria se manifestar em todos os aspectos da vida: arte, ciência, política, economia, porém, a Teologia do Domínio radicaliza essa ideia, defendendo não apenas uma presença cristã, mas uma hegemonia cristã nesses campos.
A queda e a restauração do domínio
A Teologia do Domínio também parte do pressuposto de que o domínio original dado a Adão foi prejudicado pela Queda (Gênesis 3), mas restaurado por Cristo. Textos como Romanos 5:17 ("...os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida...") e Efésios 1:20-23, que falam do domínio de Cristo e da Igreja como seu corpo, são usados como base para afirmar que os cristãos já participam, no presente, do reinado messiânico de Jesus.
Essa perspectiva é fortemente influenciada por uma escatologia pós-milenista, segundo a qual o Reino de Deus será gradualmente estabelecido na história antes da volta de Cristo, principalmente por meio da atuação da Igreja.
O domínio espiritual e o reino de deus
Outros textos frequentemente invocados incluem:
Mateus 28:18-20 – A Grande Comissão como autoridade para discipular nações, não apenas indivíduos. E a intepretação de discipular tem a ver com controle e não apenas como uma atuação transformadora.
Daniel 2:44 – A pedra que destrói os reinos humanos e se torna um grande monte (interpretação profética do domínio do Reino de Deus).
Apocalipse 5:10 – “E para o nosso Deus os fizeste reis e sacerdotes; e eles reinarão sobre a terra.”
Porém, há tensão teológica importante aqui. Muitos intérpretes alertam que o Reino de Deus, segundo Jesus, é de natureza espiritual e servidora, e não impositiva e política (cf. João 18:36). O ensino do Sermão do Monte (Mateus 5–7), com sua ênfase em humildade, serviço e não-violência, é muitas vezes eclipsado em leituras dominionistas.
A base bíblica para o domínio humano é clara em termos de mordomia e responsabilidade sobre a criação. No entanto, a extensão dessa autoridade ao domínio sociopolítico global, como defendem os proponentes da Teologia do Domínio, exige uma escapada, uma boa escapada, dos princípios hermenêuticos e exegéticos que devemos usar ao ler a Bíblia. O desafio está em equilibrar a atuação pública da fé cristã com a natureza do Reino, que é espiritual, ético e contracultural.
Vamos continuar na parte 2, espero você lá!
Prof. Gedeon Lidório
Teologia, Antropologia, Filosofia e Psicanálise
Instagram: @gedeonlidorio
E-mail: gedeon@lidorio.com.br
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