“Diz-me o que comes (e com quem) e dir-te-ei quem és”.
- Mirian Abreu
- 19 de jan. de 2023
- 4 min de leitura
Por: Mirian Abreu - Colunista BNews - Portugal
Um repensar sobre o papel da comida nas relações sociais.
É Janeiro, mês de Janus, o Deus Romano dos inícios, representado por duas faces , uma a olhar para o futuro e a outra para o passado…

E é o passado “arrependido” que vem agora, depois das festas, cobrar as promessas dietéticas feitas nos momentos de “gula". Haja disposição e um panteão para ajudar a cumpri-las! Comer é sempre prazeroso, e comer junto é mesmo um incentivo ao pecado capital!
A história está repleta de mesas postas, com comensais a banquetearem-se exibindo o seu “status” dentro do contexto social através desse “convivium”. No medievo, ter muitos quilos a mais era uma forma de distinção social, o que contribuía para uma maior ingestão de comida.
O historiador italiano Massimo Montanari conta, no seu Dicionário Temático do Ocidente Medieval, um relato de “Liutprando de Cremona, no século X, segundo o qual se recusou a dar a coroa de rei dos francos ao Duque de Espoleto por causa de seu apetite muito fraco (“não é digno de reinar sobre nós aquele que se contenta com uma pequena refeição”), é emblemático de uma realidade social e cultural na qual o alimento estava revestido de uma função semiótica bem precisa.”
No entanto, ter abundância de alimentos é regalia que não passa despercebida ao cidadão medieval comum, e é este cidadão que vai buscar no Deus Católico fundamentos que condenem estes privilégios onde a gula é prática profana.
No Inferno da Divina Comédia de Dante Alighieri, a gula também mostra esta face no personagem Ciacco, o glutão que deleitou-se nos prazeres da mesa e foi sentenciado pelos seus conterrâneos.

O ato de comer para além do necessário tem sido sinalizado no decurso da história, a começar pelo filósofo grego Aristóteles quando lista os vícios humanos, os quais, mais tarde, a Igreja Católica os nomina pecados capitais. A gula, sob a ótica desta doutrina, é o principal pecado, pois dele se originam os demais, no sentido de não conseguir se conter às investidas das outras formas de “gula“: por poder, sexo, dinheiro…
No entanto, segundo estes dogmas, é através da eucaristia que se faz a remissão dos pecados. É por meio desse antropofágico comer e beber do corpo e sangue de Cristo que há a transformação. Mas é preciso lembrar que a diferença entre o comer sagrado e o comer profano está na temperança, na continência. Ouso aqui fazer uma ímpia comparação do ritual eucarístico com um serviço “À la Françoise”, onde a comida tem um elevado grau de perfeição e exige um cerimonial, pois comer é degustar. E a comida sacra, aquela que alimenta o espírito deve ser “degustada “ e ingerida de acordo com os preceitos hieráticos cristãos. No entanto, os mandamentos da Igreja aconselham estar sempre vigilante, pois o pecado mora mesmo ali ao lado, na herege gula.
Foi inspirado neste contexto religioso medieval, onde se apregoava a chegada do Juízo Final, instaurando um cenário repleto de medos e incertezas, que Hieronymus Bosch (Jeroen van Aeken) artista holandês, pintou Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos do Homem. Numa época onde poucos sabiam ler e escrever, é através da imagem que as mensagens são transmitidas, e tal como salvo-condutos, carregam a função pedagógica de mostrar o caminho da virtuosidade, sendo no discurso da Igreja que o homem medieval irá se apegar como “tábua de salvação”.

Pintura de Hieronymus Bosch. Na imagem superior, vista geral da obra intitulada Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos do Homem. Na inferior, o destaque para o pecado da gula. A obra está no Museu do Prado em Madrid .
O tempo avança, e com ele as mudanças socioculturais se mostram através de novas formas de pensar e agir. Hoje as ciências médicas codificam a gula como compulsão, incontinência que precisa ser tratada para se ter uma vida saudável. É nesta conjunção social que a magreza toma a vez da corpulência. Carregar quilos a mais no corpo é porta de entrada para outros males, como diabetes, hipertensão arterial… sendo possível listar bem mais do que os Sete Pecados Capitais originados pela profana gula medieval.
Somos o que comemos! É atemporal esta máxima “sagrada”, especialmente nesses tempos de alimentos processados, os Junk foods.
Mas além de escolher o que se come, há também a necessidade de escolher com quem, onde e como se come. Esta antropológica seleção é o que irá identificar os sujeitos e seus grupos sociais, que não são poucos... Desde os “profanos” adoradores de Junk Food, às comidas rituais para os Santos de matrizes africanas, passando pelo vegetarianismo com seus desdobramentos lácteos (leite), ovolácteos (ovo/leite ). Seguindo com o Veganismo, e seus segmentos com os frugívoros (frutas) e os crudívoros (alimentos crus). Há também os que jejuam juntos, como no Ramadã, que é o nono mês do calendário islâmico (lunar), em que se abdica dos “prazeres carnais” durante 30 dias, por isso não comem, nem bebem, não fumam e nem têm relações sexuais desde o nascer até o pôr do sol.
Sob esta perspectiva, torna-se fácil perceber o papel da comida nas relações socioculturais. É mesmo o primeiro e o maior paradigma do comportamento moral, do autocontrole, como bem pontuou o Historiador Henrique Carneiro.
Sendo assim, é lógico afirmar que comer é mais que um ato social; é um ato político. É através dele que os sujeitos sociais envolvidos expressam o “modus Vivendi” das sociedades em que vivem. E é na comensalidade que os laços são fortalecidos, no “convivium” à mesa, que a integração é consolidada. O termo latino “E pluribus unus”, ou seja, todos num só (corpo), bem representa o comer junto, dividindo e somando sabores e saberes pelos caminhos da história da alimentação.
Dito isto, nada mais justo que juntar o pão a esta” ementa historiográfica”, visto que é um dos alimentos mais antigos fabricado pelo homem, perpassando por diferentes grupos étnicos/religiosos. Um alimento repleto de simbologias e funções .
Segue no link abaixo a receita do Pão Rústico da Mathilda Hauss
Bom deguste!
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