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A boneca no colo da alma: afetividade, luto e substitutos de sentido na cultura contemporânea

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A teologia cristã não despreza o corpo. Pelo contrário, valoriza-o como templo do Espírito (1Co 6:19), como espaço de afeto, toque e relação. Paulo, ao falar do Corpo de Cristo (1Co 12), usa a metáfora comunitária do corpo para descrever a interdependência entre os membros. Ninguém é completo sozinho. Nenhuma parte é irrelevante. Não se trata de uma imagem estética, mas de um chamado relacional: ser corpo uns dos outros.

 

Nesse sentido, a substituição da relação real por um simulacro — seja um boneco, uma rede social ou uma espiritualidade individualizada anuncia uma crise da comunidade. A fé cristã não deve negar a dor, mas convidar à construção de vínculos encarnados: com Deus, com o outro, com a comunidade.

 

É nesse contexto que o texto de Cantares 8:6 ganha profundidade:

 

Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço; porque o amor é forte como a morte, e duro como a sepultura o ciúme; as suas brasas são brasas de fogo, labaredas do Senhor.” (NAA)

 

A imagem do “selo sobre o coração” remete a um vínculo verdadeiro, gravado no íntimo, visível no corpo, não substituível por objetos. Um amor real — com dor, presença e permanência — é mais transformador que qualquer substituto simbólico.

 

Diante de fenômenos como o das bonecas reborn, a atitude cristã e dos cuidadores e terapeutas não deve ser de negação ou condenação imediata, mas de escuta atenta, discernimento profundo e resposta integral. É necessário diferenciar o gesto simbólico do sintoma patológico, a expressão de dor legítima da compulsão que aprisiona.

 

Há uma grande importância de ser presença silenciosa ao lado de quem sofre, ouvindo com o coração aquilo que as palavras não conseguem expressar (Nouwen, 1996). O primeiro gesto pastoral diante de uma pessoa que “cuida” de um boneco como se fosse um filho não deve ser repreensão, mas escuta. É preciso saber o que está por trás, antes de se “posicionar” e tomar medidas efetivas.

 

Perguntas abertas e compassivas podem revelar histórias de luto, infertilidade, perda gestacional, solidão, medo de abandono. Em muitos casos, o reborn não é o problema, mas o ícone de uma dor ainda não reconhecida pelo entorno da pessoa que sofre.

 

Do ponto de vista clínico, a presença das bonecas pode ser benéfica como recurso de transição — especialmente em idosos, pessoas com transtornos de luto prolongado ou traumas relacionados à maternidade/paternidade. Quando supervisionado por psicólogos, o uso do reborn pode facilitar a reorganização afetiva do sujeito.

 

No entanto, é preciso cuidado com sinais de compulsão:


·        Uso exclusivo da boneca como fonte de afeto

·        Isolamento social

·       Negação da realidade (por exemplo, registro da boneca como “filho” legal ou resistência em falar da perda real)

·         Substituição de relações humanas por relação exclusiva com o boneco.


Nesses casos, o reborn não está mais a serviço do cuidado simbólico, mas se torna um reduto de fuga da dor real. A intervenção deve ser feita com delicadeza, visando reintegrar o sujeito ao mundo relacional, sem violência simbólica.

 

As igrejas podem e devem desenvolver respostas litúrgicas e comunitárias aos sofrimentos emocionais que levam ao uso excessivo de objetos simbólicos. Isso pode incluir:


·         Ritos de luto para pais que perderam filhos ou que não puderam gerar

·         Celebrações de restauração para mulheres que sofreram perdas gestacionais

·         Retiros de escuta e partilha sobre o sofrimento psíquico

·         Projetos de cuidado de idosos com vínculos afetivos comprometidos

·         Grupos terapêuticos orientados por psicólogos e mentores espirituais


Sempre é bom lembrar que “o maior sofrimento humano é a solidão espiritual” (Paul Tournier, 2002). A função da comunidade cristã é fazer-se corpo disponível para aquele que sente falta de um colo, ainda que esse colo, por vezes, tenha sido projetado sobre um objeto inanimado.

 

A tendência das bonecas realistas revela que estamos marcados por carência de vínculos profundos, ausência de escuta e desintegração do corpo comunitário. O reborn não é, em si, um mal. Ele é um espelho: reflete a dor que não teve nome, o luto que não teve velório, o afeto que não teve reciprocidade.

 

Entre a crítica ácida e a romantização cega, é necessário um terceiro caminho: o caminho do cuidado integral, que reconhece a complexidade do ser humano, sua necessidade de simbolizar, sua busca por presença, sua sede de Deus.

 

A Psicologia pode oferecer instrumentos para compreender o gesto simbólico, tratar a compulsão, facilitar o luto. A Teologia pode oferecer narrativas que integram sofrimento e redenção, presença divina e comunidade reconciliadora.

 

A tarefa das igrejas e dos clínicos não é rejeitar a boneca — mas acolher o corpo que falta, restaurar os vínculos quebrados, ouvir o choro silencioso que, por vezes, só se expressa embalando o silêncio de um boneco.

 

A boneca não precisa ser o fim da história. Ela pode ser o começo de um processo de cura, isso se houver mãos humanas, palavras de esperança e comunidades dispostas a tornar-se selo sobre o coração do outro (Ct 8:6).

 


 Prof. Gedeon Lidório

Teologia, Antropologia, Filosofia e Psicanálise

 

Instagram: @gedeonlidorio

 

 

Referências para consulta

 

Bonhoeffer, D. (1937). Discipulado. São Leopoldo: Editora Sinodal. (Link para o livro: https://amzn.to/4mULcRN)

 

Boss, P. (2006). Loss, trauma, and resilience: Therapeutic work with ambiguous loss. New York: W. W. Norton. (Link para o livro: https://amzn.to/3HzqvuK)

 

Euronews. (2025, maio 30). Tendência de bonecas realistas no Brasil gera loucura viral e debate. https://pt.euronews.com/video/2025/05/30/tendencia-de-bonecas-realistas-no-brasil-gera-loucura-viral-e-debate

 

Neimeyer, R. A. (2001). Meaning reconstruction and the experience of loss. Washington, DC: American Psychological Association. (Link para o livro: https://amzn.to/4kvPPjP)

 

Nouwen, H. J. M. (1996). O sofrimento que cura. Petrópolis: Editora Vozes. (Link para o livro: https://amzn.to/43LzkJ6)

 

Rosenblatt, P. C. (2000). Parent grief: Narratives of loss and relationship. Philadelphia: Taylor & Francis. (Link para o livro: https://amzn.to/4492qnc)

 

Sociedade Bíblica do Brasil. (2017). Bíblia Sagrada: Nova Almeida Atualizada (NAA). Barueri: SBB. (Link para o livro: https://amzn.to/3FHGXIN)

 

Tournier, P. (2002). Mitos e Neuroses. Viçosa: Ultimato. (Link para o livro: https://amzn.to/43HB6fS)

 

Winnicott, D. W. (2019). O brincar e a realidade. São Paulo: Ubu Editora. (Link para o livro: https://amzn.to/43LEEfy)

 

 

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