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A boneca no colo da alma: afetividade, luto e substitutos de sentido na cultura contemporânea

Parte 1

 

No Brasil e em diversas partes do mundo, uma prática antes considerada excêntrica tem ganhado força: a adoção simbólica de bonecas realistas — conhecidas como “bebês reborn” — por adultos. Os registros se espalham nas redes sociais: mulheres empurrando carrinhos com bonecas em shoppings, ensaios fotográficos com roupinhas de maternidade, “partos” simulados e “batismos” para receber esses bonecos hiper-realistas.


 

Apesar da aparência lúdica, o fenômeno levanta questões profundas que tocam a alma contemporânea: o vazio afetivo, o luto não elaborado, os vínculos simbólicos e a espiritualização do cuidado. Mais do que um modismo, as bonecas reborn condensam carências emocionais, deslocamentos espirituais e rupturas com modelos tradicionais de vínculo humano e familiar, para falar apenas de algumas coisas relacionadas a estes “empreendimentos”.

 

Segundo Donald Winnicott (2019), em sua teoria sobre os objetos transicionais, certos itens — como paninhos, bichinhos ou bonecos — servem à criança como mediadores entre o mundo interno e o externo. São pontes entre o "eu" e o "outro", representando segurança psíquica em momentos de separação. Note bem – “servem à criança”. Há eventos, porém, em que esse tipo de objeto transicional é utilizado.

 

No caso dos bebês reborn, adultos recorrem a esse tipo de objeto em momentos de luto (pela perda de um filho, pela impossibilidade de ser mãe, pela solidão na velhice) ou como recriação simbólica de vínculos interrompidos. Conforme Winnicott (2019), o uso de objetos transicionais pode funcionar como uma ponte simbólica entre a dor interna e o mundo relacional. No contexto do luto perinatal, autores como Neimeyer (2001) defendem que a reconstrução de sentido pode se apoiar em elementos simbólicos tangíveis, desde que integrados a um processo de elaboração emocional.

 

Por outro lado, quando esse vínculo simbólico não evolui para uma reintegração psíquica com o real, o que era para ser ponte pode se tornar prisão. Como alerta o psicanalista Laplanche (1990), todo símbolo pode virar sintoma se não for ressignificado. A presença do reborn, nesse caso, não liberta do luto, mas congela o processo.

 

Dietrich Bonhoeffer (1937) fala sobre os substitutos funcionais de Deus na cultura moderna. O teólogo alemão alertava para os mecanismos humanos de criar “ídolos afetivos” — objetos ou práticas que, sob a aparência de consolo, tentam preencher o lugar do encontro com o Eterno.

 

Lendo Henri Nouwen (1996), chegamos à conclusão de que ele propõe um caminho de escuta compassiva, ao invés de julgamento – se fosse falar sobre isso. Segundo ele, o sofrimento humano se manifesta por meio de expressões simbólicas — e a tarefa do cuidador cristão é identificar a ferida por trás do gesto. Uma mulher que embala um boneco pode estar embalando a ausência de um filho, um trauma não nomeado, um amor não vivido. O problema, então, não é a boneca, mas a solidão que ela denuncia.

 

Paul Tournier (2002), dizia que “todo ser humano precisa de um lugar onde possa chorar sem ser julgado”. Esse deveria ser o papel da Igreja enquanto comunidade cristã: acolher sem rotular, ouvir sem condenar, orar sem ridicularizar. Contudo esta não é uma realidade em nossos tempos e épocas, apesar de que, a fé cristã também convida à verdade: nenhuma substituição, por mais realista, pode ocupar o lugar de um vínculo com Deus e com o próximo.

 

O desafio pastoral neste caso seria evitar o cinismo diante do sofrimento simbólico, mas também conduzir o cuidado espiritual para além do sintoma emocional.

 

No cerne da experiência com as bonecas reborn está a questão do corpo: o corpo idealizado, o corpo ausente, o corpo que consola. Esses artefatos não são apenas “bonecos”: são construções simbólicas que imitam gestos humanos — o peso de um recém-nascido, o toque da pele, o cheiro de bebê. A busca não é pela fantasia, mas pela ilusão do vínculo corporal.

 

Winnicott (2019) já destacava que o toque, o colo e o corpo da mãe constituem o “ambiente facilitador” necessário para o desenvolvimento psíquico saudável. Quando esse ambiente falha — por abandono, trauma, morte ou ausência afetiva — o sujeito, quando pode, busca um substituto. Nesse contexto, a boneca torna-se símbolo encarnado da ausência de um corpo relacional.

 

As práticas com bonecas realistas revelam, assim, um grito silencioso por corporeidade significativa, não apenas em sentido afetivo, mas também espiritual. Em uma sociedade marcada pela hiperconectividade digital e pelo isolamento emocional, o “peso” de um boneco pode parecer mais real do que o toque humano distante.

 

A viralização dos vídeos nas redes sociais e o reconhecimento oficial da atividade de artesãos reborn por câmaras legislativas — como no caso do Rio de Janeiro — provocaram reações mistas: apoio, perplexidade e escárnio. Parlamentares tentam legislar sobre o atendimento preferencial a quem circula com bonecas, enquanto psicólogos alertam para os limites terapêuticos da prática.

 

O debate revela algo mais profundo: um deslocamento de atenção pública das carências reais para as expressões simbólicas dessas carências. Como denunciaram colunistas sociais e analistas políticos, enquanto muitas mulheres perdem filhos reais por falta de acesso à saúde básica, outros setores viralizam o afeto por bonecos.

 

A crítica social é válida, mas precisa ser feita com empatia. Ignorar o fenômeno ou ridicularizá-lo pode reforçar a fragmentação emocional da sociedade, onde cada um se refugia em sua dor não nomeada — seja no consumo, na religião ou na performance simbólica.

 

 

Prof. Gedeon Lidório

Teologia, Antropologia, Filosofia e Psicanálise

 

Instagram: @gedeonlidorio

 

Referências para consulta

 

Bonhoeffer, D. (1937). Discipulado. São Leopoldo: Editora Sinodal. (Link para o livro: https://amzn.to/4mULcRN)

 

Boss, P. (2006). Loss, trauma, and resilience: Therapeutic work with ambiguous loss. New York: W. W. Norton. (Link para o livro: https://amzn.to/3HzqvuK)

 

Euronews. (2025, maio 30). Tendência de bonecas realistas no Brasil gera loucura viral e debate. https://pt.euronews.com/video/2025/05/30/tendencia-de-bonecas-realistas-no-brasil-gera-loucura-viral-e-debate

 

Neimeyer, R. A. (2001). Meaning reconstruction and the experience of loss. Washington, DC: American Psychological Association. (Link para o livro: https://amzn.to/4kvPPjP)

 

Nouwen, H. J. M. (1996). O sofrimento que cura. Petrópolis: Editora Vozes. (Link para o livro: https://amzn.to/43LzkJ6)

 

Rosenblatt, P. C. (2000). Parent grief: Narratives of loss and relationship. Philadelphia: Taylor & Francis. (Link para o livro: https://amzn.to/4492qnc)

 

Sociedade Bíblica do Brasil. (2017). Bíblia Sagrada: Nova Almeida Atualizada (NAA). Barueri: SBB. (Link para o livro: https://amzn.to/3FHGXIN)

 

Tournier, P. (2002). Mitos e Neuroses. Viçosa: Ultimato. (Link para o livro: https://amzn.to/43HB6fS)

 

Winnicott, D. W. (2019). O brincar e a realidade. São Paulo: Ubu Editora. (Link para o livro: https://amzn.to/43LEEfy)

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