As Sementes de Meu Pai
- Mirian Abreu

- 14 de out.
- 3 min de leitura
Por Mirian Abreu - Colunista Internacional deste portal em Portugal
Esta noite sonhei com meu pai.
Não aquele que o tempo levou, mas o que a alma guardou jovem e inteiro — o olhar vivo, as mãos firmes, a presença cheia de força que só os desbravadores de mundos possuem.

Estávamos na varanda da casa da fazenda em Cianorte — mas não era exatamente a casa que existiu, e sim uma outra, feita de memória e mistério. Engraçado, que nos meus sonhos as casas mudam de forma - talvez para abrigar o que ainda precisa ser entendido.
Ali havia um burburinho de vozes conhecidas: avós, tias, irmãs, primos — gerações reunidas à mesa longa e ecuménica.
Na ponta dela, sentado na cadeira de sempre, estava meu pai.
Ao seu lado, eu e a minha Bárbara — ela ainda criança, com o olhar cheio de inocência e curiosidade.
Ele abriu a palma da mão, e nela repousavam pequenas sementes amarelas, aveludadas, de Acácia, já semiabertas e com brotos - com certeza mais um regalo da Gaia Mãe.
Ele então falou em tom baixo, como quem confia um segredo à terra:
— “Essas sementes são para vocês duas. Vocês compreenderão o que há dentro delas.”
E o sonho terminou assim — simples, mas cheio de uma energia reconfortante.
Acordei com o coração calmo, tomado por uma sensação de ter recebido um legado,um legado de principios.
Na linguagem da alma, diria Jung, os sonhos são cartas escritas pelo inconsciente — mensagens cifradas que atravessam o tempo e nos tocam lá onde a razão não alcança.
Meu pai, homem de terras e de travessias, talvez tenha vindo lembrar-me de que os ciclos da vida não se encerram: apenas se transformam.
As sementes, afinal, são a forma que o universo encontrou para dizer que tudo continua.
Lembrei-me então do que escreveu Khalil Gibran: “Toda semente é um anseio.”
E percebi que cada uma guarda dentro de si o desejo de tornar-se o que foi sonhado.
Há um mundo inteiro oculto em cada grão minúsculo.
Um futuro inteiro dorme no ventre da terra.
Meu pai era um semeador de sonhos.
Plantava com as mãos, mas também com a generosidade e com a esperança.
E talvez, ao aparecer em meu sonho, tenha querido reafirmar a mim e à neta,sua missão : o de cultivar o que é invisível aos olhos, o de cuidar com zelo do que nasce .
Saint-Exupéry, no Pequeno Príncipe, escreveu que “foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante.”
Cuidar é um ato de amor, mas também de permanência.
É a arte de estar presente mesmo quando o crescimento não se vê.
Talvez meu pai quisesse dizer isso: que as sementes que ele me deu são as da paciência, do cuidado e da esperança — virtudes raras, mas necessárias para que a vida floresça.

Recordei também as palavras de Sêneca, o velho estóico que compreendia o ritmo das estações:
“As palavras devem ser espalhadas como sementes; não importa quão pequena seja a semente, se uma vez encontrou terreno fértil, desdobra sua força.”
Acredito que assim também são nossos gestos e pensamentos.
Cada palavra dita com amor, cada ato feito com consciência é uma semente que o tempo se encarrega de fazer germinar.
O cuidado que temos com elas é o cuidado com a própria vida.
Porque semear é mais do que lançar grãos — é assumir um compromisso com aquilo que virá.
É acreditar que o invisível trabalha, que o mistério cumpre suas promessas.
Sonhos como esse não são mensagens passageiras — são ensinamentos cifrados.
São encontros entre mundos: o visível e o invisível, o vivido e o eterno.
Meu pai, o desbravador, veio lembrar-me de que o sentido da vida não está em colher, mas em continuar a plantar — mesmo sem saber se florescerá.
A vida é o campo.
Nós somos as sementes.
E o tempo, ah o tempo, esse "plantador" de emoções...tudo o que ele planta germinará - mais cedo ou mais tarde - na estação certa de cada consciência.
Mirian Abreu, Crónicas compiladas, Outubro de 2025













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