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A paleta de Diego e seu cinza colorido

Atualizado: 6 de dez. de 2022

Por: Mirian Abreu - Colunista BNews - Portugal


Aquela sala de aula tinha as paredes todas brancas. A cor do teto era de um “branco anônimo”, resultante das sobras de tintas e do pó acumulado trazido pelo tempo.


O piso desgastado tinha um conjunto de cores acastanhadas. No fundo da sala resistia ainda uma pequena faixa brilhante do assoalho, como se quisesse mostrar o seu aspecto de quando foi engendrado. Na parede da frente havia um “quadro negro” que era verde, verde oliva. Estava sempre embaçado pela poeira de giz… giz branco, giz amarelo, giz verde, giz azul , giz laranja… uma gama calcária de tons pastéis!


Haviam 2 janelas com os vidros jateados que limitavam a visão para além da sala. Dessarte meu olhar se prendia na moldura das janelas, que eram azuis. Um azul celeste envolvente que me fazia lembrar uma tela do pintor italiano Francesco Mangialard.

O mobiliário escolar era uma mistura de estilos, herança de outras gerações. O intuito era a preservação de um património histórico distinto, e também o usufruto das “velharias” no contexto da sustentabilidade ambiental.


De frente para a porta envidraçada ficava a mesa dos professores, uma elegante escrivaninha escura estilo Luís XV, toda em ébano, brilhante. Foi ofertada pelos herdeiros de um ilustre aluno que lá cursou alguns anos do ginásio (liceu).


As carteiras foram dispostas em cinco fileiras, quase sem espaço entre elas. Haviam vinte, todas em madeira, mas algumas com partes metálicas, umas claras, outras escuras… um número pequeno delas era um móvel só, com banco e mesa juntos, que acomodavam 1 ou mais estudantes. Outras, com cadeira e apoio lateral para escrever. E também haviam as mais “modernas”, onde as cadeiras e as mesas foram ergonomicamente projetadas, porém nada atraentes!


Nas superfícies das mesas estavam gravadas “expressões artísticas” de diferentes datas e de variadas autorias, tal e qual xilogravuras, que levavam a perceber que, embora as carteiras fossem de épocas diferentes, estes “costumes criativos” não foram arrastados pelo tempo. Nesse contexto, a arte não tem passado nem futuro, ela está sempre no presente, como já expressou Pablo Picasso.


O patrimônio material da escola continha um acervo considerável, que incluía desde relógios de parede, poltronas, um piano Essenfelder cor de Marfim que exibia um pequeno painel feito com uma técnica chamada de intársia (consiste na incrustação de pedaços de madeira em diferentes superfícies planas dando o efeito de profundidade). Neste foi usado madeira e madrepérola, e continha um cavalo alado com formas perfeitas que magnetizava o olhar de quem o avistava. Inesquecível sensação!


Havia mais preciosidades, como um antigo elevador Atlas de 1956, que ainda estava ativo. Possuía uma porta de abertura manual em Imbuia (madeira nobre) e o seu interior era todo requintado. Antes da escola, esteve em um dos prédios oficiais na recém inaugurada capital do Brasil, Brasília! Por tudo isto, esta instituição pública de ensino era um centro importante no resguardo da memória do país.


Lá não haviam negros, nem brancos, nem amarelos e nem peles vermelhas… haviam estudantes, pessoas de todos os tons e semitons, convivendo numa composição harmônica, tal “Como ébano e marfim, lado a lado como o teclado de um piano”… como na canção Ebony and Ivory de Paul McCartney e Stevie Wonder (bem lembrado pela querida amiga Rosário Roque).


A indumentária usada pelos estudantes era livre, e nada “uniforme”. Compreendia-se que a forma de expressão, o seu jeito de ser, era também mostrado através do modo com que cada um se vestia, e assim podiam mostrar livremente seu estilo, ou a construção dele! Contudo, o uso de crachás com o nome daqueles que pertenciam à instituição de ensino foi o modo escolhido para serem identificados dentro e fora da escola. Entendia-se que a padronização fazia com que todos repetissem os que todos faziam, mesmo que não expressasse a essência individual, automatizando assim as percepções daquilo que realmente faz sentido para cada um. Acreditava-se que a imposição era uma forma de opressão!


No entanto, aquela escola pertencia a um mundo à parte, uma espécie de paraíso, embora estivesse inserida numa dura realidade! Nesse contexto escolar, mais do que o passado, vivia-se o presente. Foi nesse tempo que, ao substituir uma colega, tive o prazer de conhecer a turma do quarto ano do período da manhã. Vinte e um aprendizes, contando comigo. Foram somente algumas horas, pouco tempo, mas que ficou guardado para sempre em minha memória!


Era um dia cinzento, chovia mansinho e fazia frio. Adentrei a sala e os olhos curiosos dos estudantes ansiavam em saber acerca da substituição da professora de Artes… O primeiro contacto foi mágico, com empatia mútua. Eles, elas e eu!

Colorir o dia cinzento foi uma das atividades aplicadas. A escolha das cores era livre, e também eles eram livres para ousar. Será que uma turma de estudantes podia funcionar sem regras? Eis o desafio: “Alea jacta est” (a sorte foi lançada)!


Pois assim foi: um experimento “in loco” do que fazer quando se tem a liberdade nas mãos. Logo as “obras de arte” começaram a surgir. No princípio um pouco oscilantes, depois fluíram e usufruíram da liberdade. A arte tem esse poder; “extravasa os limites… da alegria… e até da dor”. O pensamento livre, a expressividade espontânea e o contraste do dia cinzento lá de fora com as cores de dentro da sala parecia mesmo uma tela surreal!


Diego não tinha lápis de cores, nem fez menção desse porém. Nada problematizou, foi proactivo e usou o tempo a seu favor, o tempo cronológico e o tempo meteorológico.


Trouxe o tempo de fora para dentro de sua tela, usando e abusando do cinza com os seus 65 tons catalogados. Sim, não são 50 como apontado no livro e no pálido filme onde a crítica bem o descreve: “história fraca e sem emoção, serve apenas para os adolescentes com os hormônios à flor da pele”.


Cinza vem do latim cinis, que vem a ser o resultado da combustão. Newton não a levou tão a sério, preferiu dar crédito total ao branco. Goethe viu isso como “arrogância” e criou a “Doutrina das Cores” para preencher a paleta incompleta de Newton. O intuito foi o de colaborar com outras visões acerca daquelas encontradas na obra “Óptica: Ou Um Tratado das Reflexões, Refrações, Inflexões e Cores da Luz” do físico inglês.Diego nada sabia acerca de tratados e de técnicas artísticas, pois era ainda um miúdo, mas tinha sensibilidade suficiente para dar asas à sua imaginação. Por intuição, fez uso da técnica Grisalha.


A palavra tem origem francesa, "Grisaille”, que usa tons cinza ou tons castanhos para executar pinturas e outras expressões artísticas. Andrea del Sarto, Piat Sauvage, Jan van Eyck usaram esta técnica. Rembrandt também a usou de forma intensa em suas telas, especialmente na versão italiana conhecida como Verdaccio (cinza esverdeado), em bases para tons de peles e, também, para fundos que contrastavam com cores claras, trazendo a luminosidade nas áreas onde queria sobreluzir. Fico até a pensar se a arte de Rembrandt seria tão magnífica se não tivesse criado seu “cinza colorido”.

Rembrandt Harmenszoon van Rijn.- Tempestade no mar da Galileia . Pintura a óleo sobre tela de 1633. A pintura foi roubada em 1990 do Museu Isabella Stewart Gardner em Boston, nos EUA, e desde então permanece desaparecida.


Entendo que a Grisalha seja mais do que uma técnica, é um processo criativo que vem seduzindo artistas de todos os tempos. Ingres e a sua segunda Odalisca, feita em “Grisaille”, é uma prova disto. Jean-Auguste Dominique Ingres, pintou “A Grande Odalisca”, um óleo sobre tela, 91 x 162cm, em 1814. Dez anos depois repete a obra, mas desta vez em “Grisalle” e em um tamanho bem menor, 83,2 x 109,2 cm.

Jean-Auguste Dominique Ingres - A Grande Odalisca e a Odalisca em Grisaile. A primeira encontra-se conservada no Museu do Louvre, em Paris, França.A segunda no MET, Metropolitan Museum of Art, New York, USA.


Picasso também usou a “Grisaille” e as suas variantes. Houve um tempo que ele focou-se na essência da sua arte, reduzindo a sua paleta de cores com o objectivo de destacar as linhas e as formas. Neste contexto estão inseridas diversas obras, entre elas “Guernica”, em que pintou o contexto da guerra civil espanhola e o bombardeio na cidade basca de Guernica, que ficou em cinzas.


Em Julho de 1937, Guernica foi exposta na Exposição Internacional de Paris. Conta-se que um oficial da SS em visita à exposição, aponta para o grande painel “Guernica” e pergunta a Picasso: Foi o senhor que fez isso? Respondeu-lhe Picasso: Não, foi o senhor!Este comentário contribuiu para que mais tarde afirmasse que sua obra era uma “declaração de guerra contra a guerra e um manifesto contra a violência”.


Pablo Picasso - GUERNICA Dimensões 349 X 776,5 cm, pintada a óleo, em1937. Conservada no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia.


Lá fora o céu continuava cinzento. Diego aponta (afia) mais uma vez seu lápis de escrever, onde restos do grafite caem sobre a mesa de forma propositada para esfumar a figura.


Diego, através de seus sentidos, consegue trazer as cores do cenário de fora para dentro de sua “tela”.


Contudo, na elaboração do seu processo criativo percebe-se que sabia onde queria chegar. Tinha uma direção, captada através da sua intuição, embora ainda ingénua, mas que soube “fazer arte” mesmo com a escassez de material. Pintou o cenário com sua imaginação, mas as cores eram suas, totalmente construídas por ele!

Nesse aspecto, a Arte se aproxima da filosofia, pois para cada percepção do mundo há sempre a contemplação e o desejo de compreender sua essência, mesmo de forma inconsciente. A concepção artística é uma forma de expressão em que o artista abre as portas da comunicação com universo que o cerca, fazendo jus à máxima de que a arte imita a vida… como se dissesse: vê aqui, este é meu modo de ver lá fora!


E como não poderia faltar, segue o link sobre o modo de preparo do “Pão Colorido”, depois da imagem do caderno de receitas da Tia Dirlei. Uma homenagem a minha saudosa madrinha que tanto apreciava a arte culinária.









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