Por: Mirian Abreu - Colunista BNews - Portugal

E veio outubro, trouxe com ele o outono na Europa, e também o início da colheita do medronho. Sei que quem escreve quer partilhar momentos. Alguém já disse que uma imagem vale mais do que mil palavras, e é bem verdade, mas quando se trata de sensações, nada consegue expressar a experiência “in loco”. O perfume das flores, o aroma adocicado dos frutos e o voo da elegante borboleta “amante alada”(Charaxes Jasius) quando está a se regalar entre os medronheiros. E ao fundo, como espectador, o Mediterrâneo, tal e qual um relicário que tutela dentro de si os 111 tons de azul já catalogados. É mesmo impossível ficarmos indiferentes diante da beleza… Ela é a melhor carta de recomendação, como já escreveu Aristóteles!
Por isso, sempre admirei o Mediterrâneo. Apesar de sua grandeza, não foi tipificado como oceano, mas foi, e é, um extraordinário “espaço líquido cultural e geográfico“ fundador de muitas civilizações. O historiador Fernand Brudel ”qualificou o Mediterrâneo como uma encruzilhada muito antiga. Há milénios tudo converge em sua direcção, confundindo e enriquecendo a sua história: homem, animais de carga, veículos, mercadorias, navios, ideias, religiões, artes de viver”. Foi o mar de Homero, de Hércules e de Adriano… e também dos migrantes que através dele chegaram, e por ele fugiram. É um mar que une, mas também que separa, esteve nos “desejos doentios” de Hitler e está agora também nos de Putin.
Por outro lado, como elemento conciliador, agrega diversos hábitos e costumes que possibilitam trocas, contribuindo para a continuidade destas práxis culturais.
O Mediterrâneo é mais do que um mar, é um modo de viver. Suas características atraíram tantos que a fama logo nele mergulhou e ali fez seu porto. A biodiversidade da sua flora e fauna é mesmo peculiar, com elementos que possibilitam uma alimentação saudável composta por ingredientes frescos, produzidos nas regiões locais. E não é por acaso que a tão conceituada Dieta Mediterrânea faz parte do Património Cultural Imaterial da Humanidade inscrita originalmente na Lista Representativa da UNESCO na sua 5ª sessão do Comité Intergovernamental.
Dentro desse contexto, acho oportuno visibilizar os outros dois personagens que atuam na biodiversidade do Mediterrâneo: o arbusto Arbutus unedo, e a colossal borboleta diurna Charaxes Jasius. São “parceiros” inseparáveis, pelo menos para a lepidóptera em sua fase larvária, onde se alimenta unicamente das folhas do medronheiro. Onde, mais tarde, se faz crisálida para, depois, voar por outros recantos. Colossal na beleza e no tamanho, sua envergadura chega aos 80 milímetros, e por este atributo foi “eleita” a maior borboleta diurna da Europa. Juntos, medronheiro e borboleta, fazem uma boa apresentação na arte de colorir e saborizar a natureza para além do “Mare Nostrum”, sendo encontrados também no oeste da Europa (mediterrâneo-atlântico), ou seja, desde a Irlanda, Bretanha, regiões tipicamente de clima atlântico, à costa mediterrânica. Em Portugal, são vistos em quase todo o território, sendo encontrados com maior frequência no Algarve, sobretudo nas Serras de Monchique e do Caldeirão.

Mapa de distribuição geográfica do medronheiro
O Medronheiro é um velho conhecido na história da humanidade, e seu fruto leva diferentes nomes pelo Mediterrâneo afora: medronho, madroño, corbezzolo… As antigas civilizações já o exaltavam. Virgílio, em sua Eneida, conta que o corpo do arcádio Pallante, foi colocado em um caixão feito do Arbutus unedo e outros galhos rurais e levado de volta ao pai Evandro, rei dos Arcádios.
Mais tarde, o poeta italiano Giovanni Pascoli, inspirado em Virgílio, e também pelas ideias da unificação da Itália (Risorgimento), vê nas três cores desta planta (os frutos vermelhos, as flores brancas e as folhas verdes) um presságio da futura bandeira italiana, e faz disso uma Ode ao Corbezzolo, elevando-o ao patamar de árvore nacional. É tradição na cozinha italiana o uso do mel de corbezzolo, usado no cozimento das alcachofras e acelgas para atenuar o sabor amargo destes vegetais. Usa-se também em queijos frescos e curados. O tradicional Torrone da Sardenha, “Torrone al miele di corbezzolo”, tem o mel como ingrediente essencial, o que lhe atribui o sabor característico.
Na Espanha, o madroño é levado à alta estima pelos madrilenos, está no brasão da bandeira em que mostra um urso em pé diante de um madroñero. E também está na praça da Puerta del Sol, em uma obra feita em ferro pelo escultor Antonio Navarro Santafé (1967) representada pelos mesmos símbolos. Além destes, no Museu do Prado, está presente na obra “O jardim das delicias terrenas” (la pintura del madroño), datada de 1504, do pintor holandês Hieronymus Bosch, onde também aparece, entre outros frutos, como símbolo do exotismo e hedonismo de uma época.

Hieronymus Bosch - 1504 - Óleo sobre madeira - Museu do Prado
A grande estima dos espanhóis pelo madroño tem seu fundamento em histórias orais passadas de geração em geração, onde relatam que o Rei Carlos V foi curado de uma grave doença em que as flores e folhas do medronheiro foram utilizadas como remédio. Não sei se são “lendas”, nem sequer qual foi o mal que acometeu Carlos V, mas acredito que todas as histórias trazem um fundo de verdade. Digo isto porque há hoje estudos científicos que indicam a presença de taninos, principalmente nas folhas do medronheiro, têm propriedades antioxidantes, ou seja, contribuem para que os radicais livres sejam controlados, reprimindo assim o avanço de doenças degenerativas dos tecidos, células e órgãos.
Também em Marrocos há a tradição de utilizar as folhas para o preparo de um chá que tem como função diminuir a pressão arterial. Alem disso, usam cozinhar as raízes do medronheiro e fazer um outro tipo de chá usado como tratamento alternativo da arteriosclerose.
O medronheiro já foi chamado de “tesouro dos remédios”, e não é por acaso: as suas características específicas vão desde a capacidade regenerativa em solos causticados por queimadas até à sua floração tardia e à sua longa frutificação. Todos esses atributos fizeram dele um organismo vital dentro deste ecossistema.
No entanto, as particularidades do Arbutus unedo não são somente curativas. Em Portugal, o encarnado fruto tem vindo a ganhar destaque na gastronomia. Se antes era usado essencialmente para o fabrico da Aguardente de medronho e, em menor escala, para ser consumido como fruto fresco, mas em pouca quantidade, com bem sinaliza o seu nome em latim “Arbutus unedo: comer um de cada vez”, caso contrário, mais tarde, o corpo irá ressentir-se. Recentemente, a culinária portuguesa descobriu novas formas de preparo, criando delícias que contribuíram para maior visibilidade do medronho. Desde licores requintados, geleias e doces que servem de base para gelados e para a panificação e pastelaria, até combinações inusitadas como o azeite de medronho.
Há também o inovador Pão de Medronho, que recebeu o Prémio Food Fab Lab 2020. Seu criador, o pesquisador do Politécnico de Leiria, o Professor Doutor Rui Lopes, garante que o pão agrega elementos antioxidantes, baixo teor de sódio e muitas fibras, ingredientes necessários para uma dieta saudável. Tem gosto de quero mais, porém a receita é guardada à sete chaves!
A natureza tem o seu tempo próprio. Ela não espera pela vontade alheia. A apanha do medronho é pontual. Aproveitemos então! Que tal um BOLO DE MEDRONHO E AMÊNDOAS acompanhado de um shot da “espirituosa” MELOSA para nos acalentar neste friozinho que está a chegar a Portugal?
Vamos a eles! Bom deguste!
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