Blindagens...
- Célio Juvenal Costa
- há 5 dias
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Por Célio Juvenal Costa, professor da UEM
“Temo, senhores, que atribuindo o mal que se confessa às causas que se indicam, não se está levando em conta a enfermidade, mas os sintomas. Por mim, estou convencido de que a enfermidade não se acha ali; é mais geral e mais profunda. Essa enfermidade, que é preciso curar a todo preço, podeis bem crê-lo, nos levará a todos, ouvi bem que digo todos, se não nos cuidarmos disso, é o estado em que se encontram o espírito público, os costumes públicos. Eis onde se acha a enfermidade; é para este ponto que desejo chamar a vossa atenção”.

Este discurso foi pronunciado pelo escritor e político Alexis de Tocqueville, na Assembleia Nacional Francesa no ano de 1848, nas vésperas da eclosão das chamadas Revoluções de 1848. Ele alertava que o estado das coisas na esfera política em seu país estava de tal forma em descompasso do que a sociedade queria, que, sem se darem conta, os políticos estavam criando o clima para uma revolta popular. “Quando lanço, senhores, um olhar atento para a classe que governa, para a classe que tem direitos políticos, e depois para aquela que é governada, o que se passa numa e noutra me assusta e me inquieta”, continua ele; e mais, “O que vejo nela, se posso exprimir numa palavra: os costumes públicos alterados, já estão profundamente alterados; alteram-se cada vez mais todos os dias; cada vez mais, às opiniões, aos sentimentos, às idéias comuns sucedem interesses particulares, perspectivas particulares, pontos vista tomados à vida e ao interesse privado.”
Quando vejo o que está acontecendo no Congresso Nacional, especialmente na Câmara dos Deputados ultimamente, as palavras de Tocqueville assumem um caráter atual de perplexidade e de angústia. Mas, antes de comentar as leis esdrúxulas que estão na pauta, é preciso deixar claro que o Corpo Legislativo é, em uma república, um palco por excelência de disputa do poder, com partidos de direita, centro e esquerda que propõem leis, fiscalizam o Poder Executivo (e alguns dele fazem parte) e as pautas são intensamente debatidas. Tal estado de coisas não é apenas real, mas necessário em uma democracia, pois é fundamental que exista uma oposição organizada para que o Executivo, seja lá quem for e de qual partido ou ideologia for, não corra o risco de governar de forma autocrática.
No entanto, o que vimos esses dias é algo para além do que é atribuição do Legislativo. Parafraseando Tocqueville, o que vimos e vemos, por parte de uma gama de deputados de oposição radicais em seu discurso ideológico de extrema direita, é a defesa escancarada dos interesses privados em detrimento dos interesses públicos. A chamada PEC da Blindagem é um descalabro republicano na medida em que se defende a existência de uma redoma jurídica que objetiva, na prática, a impunidade por parte de (in)dignos representantes populares no Congresso Nacional. Já não chega o fato de que deputados e senadores definam os seus próprios salários e benefícios, que hoje no total giram em torno de 100,000,00 reais mensais? Agora se quer impedir que o Poder Jurídico exerça sua atribuição constitucional de, se for o caso, julgar e condenar pessoas que têm mandatos legislativos? Na prática, tal PEC representa, como inúmeros especialistas já definiram, fortalecer o espírito de corpo e dificultar ao máximo que os crimes sejam investigados e, se for o caso, devidamente punidos. Em outras palavras, é a defesa de interesses privados no sacrifício dos interesses públicos. O embate político, saudável na república, assume o caráter de denuncismo vazio em relação aos outros poderes, e de, em nome da liberdade, agir acima da lei.
Já a chamada Lei da Anistia se configura como outra excrecência ao espírito republicano. O Brasil, agora pelas vozes de extremistas que foram eleitos pelo discurso pretensamente moralista, teima em não se tornar um adulto responsável pelos seus atos. Parece que se quer uma adolescência continuada em que se busca sempre o perdão pelos atos irresponsáveis, com a desculpa de que, como adolescente que acha que sempre tem razão, ele tem liberdade para fazer as coisas. Ser adulto é encarar com responsabilidade a vida e saber que há limites para a convivência na sociedade, os quais devem ser respeitados e, caso não sejam, devem ser punidos, para o bem de todos. O Brasil se tornar, de fato, adulto, é efetivar, é consolidar seu espírito republicano e, por consequência, seu agir democrático. Simplesmente anistiar todos aqueles que estão envolvidos na tentativa de derrubar um governo democraticamente eleito, desacreditar um dos poderes pilares da República, ao querer anular as decisões do STF, é um claro ato de teimosia adolescente em não reconhecer que o exercício de sua pretensa liberdade foi, na verdade, um ato egoísta, e o seu perdão é o reconhecimento de que, mais uma vez, os interesses privados devem prevalecer sobre os interesses públicos.
Enfim, muito já se falou sobre essas duas leis que pairam, como punhais, sobre a cabeça da República brasileira, e que eu não repetirei aqui. A resistência cidadã à PEC da Impunidade e à Lei da Anistia é necessária como defesa do interesse público contra os interesses particulares de quem exerce uma função pública de tamanha importância. É preciso tentar, como alertava Tocqueville em sua época e para seu país, salvar o “espírito público” para recuperar os “costumes públicos”, para, no nosso caso, o bem do equilíbrio e do crescimento da nação brasileira.
Há, ainda dois fatos que é preciso dar um destaque aqui. O primeiro diz respeito ao deputado Eduardo Bolsonaro estar fora do Brasil, sem estar licenciado do cargo, desde julho e, em uma manobra que beira o absurdo das brechas no regulamento da Câmara dos Deputados, ser designado líder partidário para não ter que renunciar ao mandato ou ser cassado. É uma afronta aos cidadãos brasileiros, especialmente aos trabalhadores, que um representante eleito falte por tanto tempo ao seu trabalho e não seja demitido. Se isto não for um exemplo da proteção do interesse privado em detrimento do público, eu realmente não sei que nome dar a tal manobra. Segundo ponto, é preciso deixar claro que não só deputados de partidos de direita e de extrema-direita, mas também deputados de esquerda, em especial doze do PT, votaram a favor da PEC da blindagem, fato que é inaceitável e incongruente com a ideologia partidária; tais deputados engrossam as fileiras daqueles que defendem os seus próprios interesses e não os do público, a quem representam.
Termino esta reflexão novamente com o pensador francês Alexis de Tocqueville, no mesmo discurso de 1848: “Quando passo a procurar, nos diferentes tempos, nas diferentes épocas, entre os diferentes povos, qual foi a causa eficaz que provocou a ruína das classes que governavam, vejo bem tal acontecimento, tal homem, tal causa acidental ou superficial, acreditai, porém, que a causa real, a causa eficaz que faz com que os homens percam o poder é que se tornaram indignos de mantê-lo.”
PS: quando escrevi este texto, ainda não havia a decisão da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal de rejeitar a PEC da Blindagem que havia sido aprovada pela Câmara dos Deputados. É preciso reconhecer que os senadores ouviram as centenas de milhares de vozes, que se manifestaram no último dia 21/09, pela não aprovação da PEC e da Lei da Anistia. Parabéns aos senadores! Mas, mesmo com a rejeição do projeto de emenda constitucional, julgo válidas as reflexões aqui apresentadas, pois o que está em jogo no momento são as tentativas, cada vez mais belicosas, de atentar contra a república democrática brasileira.
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