
Dia desses, mal comecei a contar um causo para um dos meus filhos e ele me interrompeu, dizendo que eu já havia contado aquela história.
_ Você está ficando muito repetitiva, mãezinha, tem que ver isso hem!
_ Ficando não, filho, sempre fui repetitiva.
_ Como?
_ Quando você e seu irmão eram pequenos, eu repetia inúmeras vezes as histórias, as regras da casa ou da escola, as brincadeiras, os filmes e os desenhos animados. Só o filme Rei Leão, assistimos juntos umas 20 vezes. As repetições, em geral, ocorriam a pedido de vocês.
_ Ah mãe, daí não vale, né.
_ Filho, na minha trajetória de professora também fui repetitiva. Eu reiterava a explicação de um conteúdo, a pedido dos alunos que não prestavam muita atenção. Outras vezes, eu apresentava diferentes formas de analisar o mesmo conteúdo, por acreditar que a memorização é aliada da aprendizagem.
_ Minha terapeuta vive pedindo para que eu conte algo novamente, de outro jeito. Diz ela que a palavra dá novo sentido a algo, ajudando a superar padrões comportamentais que incomodam.
_ Tá bom, mãe, já entendi.
_ Mas, eu não terminei. Quando leio as notícias ou escuto o jornal na TV, parece que tudo se repete. Negros periféricos morrem todos os dias. Mulheres assassinadas, todos os dias. Descobrimos políticos corruptos, todos os dias. Violência, todos os dias. Tudo se repete.
_ Isso é verdade!
_ E tem mais: repetimos roupas; livros são reeditados; jogadores repetem centenas de vezes os exercícios que os levam ao tão desejado gol; músicos ensaiam recorrentemente uma música para conseguir encantar a plateia…
_ Hum!
_ Tem gente que acha que a culpa é da tal Lei do Eterno Retorno, de Nietzsche (tudo voltará a se repetir). Inclusive, é possível que Cazuza tenha se baseado nela para compor a música "O tempo nao para":
Eu vejo o futuro repetir o passado.
Eu vejo um museu de grandes novidades.
O tempo não para.
Não para não, não para.
_ Além disso, filho, a vida tem um quê de mesmice, uma certa monotonia. Afinal, todo dia o sol nasce e, depois, a noite vem. Mas, eu quero te contar um segredo: há espaço para a transgressão.
_ Como assim?
_ Bem, para explicar isso vou me valer de uma célebre frase do grande Heráclito, já que não concordo muito com a tal Lei do Eterno Retorno.
Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou (Heraclito).
_ Ou seja, meu bacuri, mesmo quando repetimos algo, nunca é a mesma coisa. Nós adequamos a mensagem ao contexto da conversa, criando novos significados.
_ ???
_ Há sempre a possibilidade do ouvinte, ou leitor, compreender de maneira diferente o que foi dito. Diferente de outros e diferente do repetidor. Como a História não se repete da mesma forma, reiterar um causo não é um problema. Talvez, a questão resida naquele que apontou o dedo acusatório. É possível que ele esteja se repetindo na compreensão do que foi dito. Falta criatividade na interpretação do que se escuta.
E, digo mais: não se iluda com as novas histórias que conto. Aquilo que parece novo, pode não ser. "O velho pode vir travestido de novo" (Brecht).
_ Eita!
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