Por: Mirian Abreu - Colunista BNews Europa
A loja do alfarrabista (livros “usados” e antiguidades) abria às nove horas, mas desde as sete que Clio já estava de pé e a tentar recolher as moedas do seu cofre que estava repleto, resultado de um ano inteiro de poupança. Estava tão apinhado que o orifício por onde era retirado o seu “tesouro” ficou pequeno para escoar tamanha demanda. Por fim, conseguiu retirar e contabilizar todo seu património e seguir para o alfarrabista a fim de adquirir livros que pudessem contar a origem da cidade onde estava agora a viver. Era uma curiosidade que consumia seu pensamento já há algum tempo. E tempo era algo precioso para ela.
A loja era antiga, porém muito bem organizada e ficava em uma zona considerada nobre na histórica cidade portuguesa de Vila Real de Santo António, na região do Algarve, fronteiriça a Espanha. Uma terra de filhos ilustres, dentre eles o poeta António Aleixo e a poetisa Lutegarda Guimarães de Caires.
Clio tinha o hábito de visitar com frequência a loja, pois lá encontrava sempre um mundo à parte daquele que vivia lá fora. Chamava seus achados de livros mágicos, nos quais viajava pelas histórias em aventuras sem igual. E sempre que queria descobrir algo, era lá o seu recanto. Nessas suas “viagens“ ficou a saber da construção de um presépio gigante que contava, através de elementos e personagens em miniatura, a história do Algarve e, em especial, de Vila Real de Santo António. Era o que faltava para dar vida áquilo que tinha lido nos livros encontrados no alfarrabista.
O presépio era mesmo gigante, considerado o maior de Portugal, com 240m2 e com cinco mil peças. Foram utilizadas 20 toneladas de areia, 4 toneladas de pó de pedra e três mil quilos de cortiça. Tinha personagens que se movimentavam, dando vida ao cenário que levou 42 dias para ser confecionado, pelas mãos habilidosas da equipa composta por Augusto Rosa, Teresa Marques, Joaquim Soares e António Bartolomeu… um mundo mesmo surreal!
Vídeo Presépio:
Perdida em pensamentos, como numa espécie de transe, Clio vê-se levada para dentro do presépio, percorrendo as ruas, sentindo os aromas e o frenesi, com o burburinho do surreal cenário. Num correr de olhos ela prende-se na contenda entre dois muçulmanos que discutem por conta do vendedor das especiarias não ter trazido a encomenda que o outro já havia pago.

Mais adiante cruza com um trovador que lhe conta que mais tarde haveria uma apresentação na arena , e a convida a assistir ao evento.

E a cada passo havia uma surpresa. Clio estava se sentindo a própria Alice no pais das maravilhas… e estava mesmo maravilhada!
Chegou até sentir o cheiro dos pães quentinhos assados em fornos a lenha, que eram feitos todos os dias pelos padeiros locais.

Que experiência fantástica pensava ela! E sentia-se privilegiada por poder adentrar naquele mundo surreal, pois sabia que era um desejo de muitos .
Entre um saltitar e outro, olhando tudo ao mesmo tempo, não percebe quem lhe vai à frente, e dá de encontro com um senhor. Enquanto se desculpava pelo incidente, ia ao mesmo tempo observando aquele homem esguio, de porte altivo. Trazia apoiado em sua mão esquerda uma elegante bengala e estava vestido com uma casaca acastanhada, com um colete abotoado de cima abaixo. Através do decote do colete exibia um jabot (babado) para ornamentar a fina camisa que trazia por baixo.
Ao invés de calças, vestia culotes (breeches) que eram abotoados na altura dos joelhos. Usava uma peruca com cachos nas laterais que era presa por um laço atrás da cabeça. Era uma figura emblemática!
Com um aceno de cabeça, como se dissesse “desculpas aceites”, ele segue em direção à praça central e senta-se em um banco. Clio ficou a observá-lo de longe, mas a curiosidade fez que se aproximasse. Logo se apresentou e ficou a saber que o homem vivia em Lisboa, estudou na Universidade de Coimbra e se chamava Sebastião José de Carvalho e Melo. Enquanto falava tinha as mãos sobrepostas sobre sua bengala. A madeira avermelhada e brilhante harmonizava perfeitamente com o seu traje. Clio notou que no topo da bengala, onde ele apoiava as mãos, havia um entalhe em forma de estrela dourada de oito pontas, circundada por quatro peças prateadas e iguais entre si em formas curvas.
Detalhes que a fez lembrar de um brasão que havia visto num livro de heráldica. Percebendo que ela observava a bengala, revelou que a peça era rara, feita em madeira Pau Brasil, e o desenho representava o brasão da sua família Carvalho, um presente oferecido por um grande mestre escultor e entalhador português chamado Silvestre Faria Lobo, um dos responsáveis pela decoração de algumas salas do Palácio de Queluz, que está localizado na cidade do mesmo nome, e que faz parte do município de Sintra, na Área Metropolitana de Lisboa.

Palácio Real de Queluz
Pareceu-lhe acessível esse tal Sebastião, embora cheio de empáfia, mas parecia gostar de falar, o que seria uma boa oportunidade para saber mais sobre a cidade. Com muita desenvoltura e imodéstia, ele a convida para caminhar pelas ruas da cidade e vai contando-lhe que foi ele quem teve a ideia e iniciativa de construir Vila Real de Santo António, ou melhor, de fazer uma reestruturação no Algarve, trazendo modernidade e novas formas de mercado que favoreceriam o comércio de Portugal com outros reinos. Para isso, foi necessário “mão de ferro” e uma mente direcionada para o progresso. Mas a forma como enfatizou a sua forte postura foi para Clio como quisesse se justificar das medidas extremas que usou em sua administração.
Mais à frente, ele aponta para um povoado chamado Monte Gordo, e relata que é habitado em sua maioria por pescadores vindos da Catalunha, atraídos pela pesca da sardinha, os quais, utilizando de técnicas inovadoras para a preservação do pescado, possibilitaram um grande comércio de exportação. E, para por fim àquele cenário, decide construir uma nova Vila, juntamente com uma Sociedade de Pesca, marcando assim o território português diante da investida latente dos espanhóis no espaço algarvio. Pôs em prática a ordenação que se vinha arrastando há tempos, desde a época do Rei D. João III, escrita em carta régia datada de vinte de agosto de 1542, que determinava que ao nome de Vila Real de Santo António de Arenilha fosse retirado Arenilha por ser termo espanhol, passando assim a ser legitimada como Vila Real de Santo António.

Imagem: Vila real de Santo António
Avança então na escolha da localização e lança a carta régia em 30 de Dezembro de 1773, onde dá início à construção da vila com capacidade para a instalação de todos os prédios “com funções civis e industriais: nele farei delinear a dita Vila reedificada com uma competente Praça; na qual a Igreja; a Casa de Câmara; e o Terreiro do Pão tenham o Primeiro lugar sem lhe faltar comodidade para se fazer um amplo Mercado (…). Tomando a mesma Praça por centro, mandarei reproduzir dela em linhas rectas as Ruas necessárias para se formarem as Casas, Telheiros, Lagares e Armazéns das Pescarias”.

Carta hidrográfica do Rio Guadiana, datada de finais do século XVIII, na qual já se pode observar a nova vila edificada num traçado regular Fonte: acervo de Andrea Fidalgo

Prospecto da Igreja e todo o lado norte da Praça de Vila Real de Santo António, rubricada pelo Marquês de Pombal. Junho de 1774. Fonte : Acervo de Andrea Fidalgo

Pormenor das Sociedades de Pescarias extraído do Desenho-relatório da construção de VRSA, de autoria de José Sande de Vasconcelos. Outubro de 1774. Fonte: Acervo Andrea Fidalgo
Grande homem este Sebastião, mas também um narcisista, pensou ela, observando que ele sempre falava dos feitos na primeira pessoa do singular, como se fosse ELE, a fazer tudo sozinho.
Clio então resolve pôr a sua opinião em “prosa”, ao que ele responde: Minha cara, esta terra precisa do progresso. Eu tenho os ideais no futuro .Temos tudo para avançar. Comparo o contexto com um farol, que precisa de um faroleiro para iluminar os caminhos cobertos pela escuridão. Esse é meu papel, fazer progredir. Almejo um futuro brilhante para o Reino de Portugal e dos Algarves!
Clio gostou do que ouviu. Mas continuou com a opinião de que ele era sim um narcisista, mas sabia onde queria chegar. Afetos (e desafetos) à parte, o desejo de Clio era saber mais. E ele então prossegue, dizendo que viveu fora de Portugal alguns anos, na Áustria e na Inglaterra, e lá foi “contaminado” pelas ideias iluministas, as quais influenciaram a sua visão de mundo, despertando o desejo de modernizar a administração pública e, junto a isto, aumentar o quanto fosse necessário os lucros procedentes da exploração das colónias, sobretudo os advindos da “América Portuguesa”. A seu ver, a Companhia de Jesus, ordem pertencente à Igreja Católica, estaria a ultrapassar os limites de poder, fortalecendo a Igreja ao ponto de sobrepor-se ao poder da Coroa. Por isso, medidas assertivas foram tomadas para que se cortasse o mal pela raiz. E assim fez. O que desagradou a muitos.
No entanto, tinha muito ainda a fazer pelo Algarve, diz ele, mas o infortúnio pôs-se à frente dos seus caminhos com a morte do Rei D. José I, e com a ascensão ao trono da filha D. Maria I, “foram-me tirados os poderes administrativos, assim meus projetos literalmente morreram na praia!” E no novo contexto administrativo reaabriram todas as portas para a Igreja. E a Companhia de Jesus passou a reger plenamente o reinado de D. Maria I.
“São tempos nebulosos, a rainha me quer distante pelo menos a 20 milhas. A fé cegou a monarca e a fez enlouquecer!”
Retira então da algibeira (bolso) dos culotes um relógio dourado onde se vê a marca Potter/London, em que a numeração das horas é em números romanos e os minutos em numeração árabe. Sebastião olha demoradamente para a peça como se lembrasse de algo nostálgico e diz que ganhou de um amigo inglês, quando inaugurou a Real Fabrica de relógios no complexo fabril das Amoreiras… “old times!”, diz ele, e fecha o relógio, como se pusesse fim naquela lembrança... “o Marquês está morto!”... faz um leve aceno com a cabeça dirigido a ela e desaparece no meio do burburinho.
Clio quis chamá-lo de volta, mas sua voz não o alcançou. Tinha tantas perguntas…
Quem construiu Vila Real de Santo António? Nos livros vêm os nomes dos nobres, mas foram eles que transportaram as pedras? Lisboa foi destruída por um terremoto, quem outras tantas pessoas a reconstruiu? Em que casas moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a cidade de Vila Real de Santo António para onde foram os seus pedreiros? A grande Lisboa e seu Mosteiro dos Jerónimos. Quem o ergueu? O vaidoso Sebastião “administrou” os Algarves, o Brasil e Portugal… Sozinho? Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço? Quando Sebastião foi afastado do cargo por D. Maria I, chorou. E sua dor foi maior dentre tantos outros? Suas lágrimas tinham mais sal?
“Em cada página uma vitória. Quem cozinhava os festins? Em cada década um grande homem. Quem pagava as despesas? Tantas histórias Quantas perguntas”…
(extraído do poema Perguntas De Um Operário Iletrado, de Bertold Brecht)
A Sociedade das Pescarias deixou o seu legado através das fábricas que mais tarde ali se instalaram. Dentre os “pecados” oriundos da região, o atum é o que mais representa a identidade local. E para dar ainda mais sabor à história de Vila Real de Santo António, segue no link abaixo a receita de uma iguaria típica : Bifes de atum à moda de VRSA.
Bom deguste!
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