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O LADO (NADA) SUTIL DA CENSURA E DA PERSEGUIÇÃO À CLASSE ARTÍSTICA

Foto do escritor: Fabiana CarvalhoFabiana Carvalho

Durante o regime militar (1964-1985), a censura foi um dispositivo amplamente utilizado para controlar a informação e suprimir a oposição ao governo. O severo Ato Institucional nº 5/1968 (AI-5) instalou poderes de repressão e tortura que atingiram não somente a esfera política, mas todo o cenário cultural brasileiro, especialmente as manifestações populares. A criação da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) junto ao Ministério da Justiça ampliou tanto a intervenção direta dos órgãos governamentais como os modos indiretos de policiamento, “dedos-durismos” e obstrução da liberdade de expressão manifesta em filmes, livros, programas de TV, peças de teatro, etc. Sob o argumento de “ameaça à família tradicional, aos bons costumes e à pátria”, diversas pessoas e produções culturais foram perseguidas, condenadas como elementos subversivos, perigosos e imorais, punidas por meio de listas proibitivas nos estados e municípios e reprimidas com exclusões e exílios.

Com muita resistência, a classe artística e os/as criadores/as de cultura encontraram meios de sobrevivência, contribuindo, após a redemocratização nos anos de 1980, para a projeção das diferentes manifestações da cultura nacional, para a criação de legislação específica e para o amparo aos direitos fundamentais na área. Atualmente, espetáculos e obras são analisados para se estipular não a censura federal, mas a classificação indicativa, ou seja, um meio legal que categoriza a exibição de acordo com a faixa etária adequada para cada tipo de conteúdo.


Os critérios para determinar a classificação indicativa incluem não a proibição, mas a análise da presença de cenas de violência, consumo de substâncias lícitas ou ilícitas, cenas de sexo ou nudez, linguagem e conteúdos sensíveis que podem causar impactos ou não serem recomendados em determinados locais e a determinados públicos. Essas decisões estão regulamentadas tanto pela Secretaria Nacional de Justiça, que define os procedimentos e bases para avaliação dos conteúdos, como por outros dispositivos, como a Constituição Federal, as leis de cultura e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina a não recomendação de obras ou espetáculos caso estes não estejam de acordo com a faixa etária indicada. A classificação indicativa orienta espectadores/as, porém não veta a comunicação intelectual, artística e científica de produtores/as e criadores/as de cultura, tampouco impede a livre escolha em consumir as referências culturais, uma vez que, de acordo com o texto constitucional, ninguém pode exercer censura ou impedir a manifestação da expressão e da informação. Além disso, os princípios laicos no Brasil garantem que o acesso a um livro ou a permissão para assistir a uma peça teatral, quando crianças são consideradas, devem ser supervisionados pelo/a responsável, sem que isso impeça o direito de outras pessoas de acessar esses mesmos bens.


A despeito dessas informações, expressões culturais diversas, como peças de teatro, exposições em museus, performances LGBTQIAPN+, rap, hip-hop, funk, danças ritualísticas e outros produtos da cultura negra e indígena, obras literárias (indicadas para vestibulares ou para as escolas por meio do Programa Nacional do Livro Didático ou de políticas públicas culturais), paradas sobre a diversidade sexual e manifestos contra o feminicídio, estão sendo perseguidas por uma espécie de censura que tenta impor a falácia ditatorial acerca da “moral e os bons costumes”. Tal perseguição – subjetivamente – define o que pode ou não ser apresentado em termos culturais. Evitar temas contundentes e questões necessárias para pensar e compreender os processos de opressão e desigualdade, e visibilizar grupos minorizados socialmente, parece inflamar a reação de grupos conservadores e de articulistas políticos da extrema-direita. Já é comum no Brasil a operação de estratégias de controle discursivo que – direta ou indiretamente – impedem a livre expressão do pensamento artístico ou individual. O banimento de livros e manifestações culturais ilustra, muito bem, o modus operandi e as táticas falaciosas desses grupos na captura da opinião pública.


A recente aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 16719/2023 pela Câmara Municipal de Maringá (Paraná) evidencia ainda mais esse modus. No dia 8 de agosto, o legislativo local proibiu a destinação de recursos públicos municipais para projetos e apresentações culturais que discutam a violência de gênero, a discriminação racial, o uso de drogas, o preconceito étnico e contra pessoas LGBTQIAPN+. Com a suposta intenção de proteger mulheres, crianças e adolescentes e de não disseminar violência e julgamentos por meio das manifestações artísticas, o PL estabelece o controle e uma censura (nada) sutil à classe artística maringaense, impedindo-a de acessar investimentos financeiros por meio dos editais de cultura e de manifestar pensamento crítico em questões sensíveis para a sociedade.


Na defesa do PL, sua propositora, a vereadora Cris Lauer (Partido Novo) – autointitulada nas redes sociais como a “voz da direita conservadora de Maringá” –, alega não ser contra os espetáculos que contenham violência, nudez ou pautas LGBTQIAPN+, mas sim contra o emprego de recurso municipal para o custeio desses, porque, em sua visão, tais espetáculos induzem crianças e adolescentes à corrupção moral. Não é a primeira vez que a Câmara de Vereadores/as, por meio de Cris Lauer, gera polêmica e censura contra as/os artistas locais: espetáculos de dança, exposições de arte contemporânea e performances realizadas por mulheres (cisgêneras e transgêneras) já estiveram na mira de políticas/os e grupos conservadores/as maringaenses. Por outro lado, o Conselho Municipal de Políticas Culturais alertou sobre os perigos inconstitucionais do PL e sobre quem, de fato, terá competência para decidir o que é violento, preconceituoso ou afrontoso nas manifestações culturais, enfatizando que a regulamentação passará pela Prefeitura, mas deverá seguir as diretrizes estabelecidas pela Secretaria Nacional de Justiça e não poderá ferir os princípios legislativos de amparo à cultura nem a livre manifestação ao gerar a censura prévia das ações culturais. A classe artística denuncia a tentativa de interdição às diferentes formas culturais na cidade e segue mobilizada para que o Prefeito Ulisses Maia não sancione a lei.


Apenas para contextualizar a armadilha retórica presente no texto do PL com apresentação cultural recentemente exibida: a encenação da “Maria Antonieta decapitada” na abertura das Olimpíadas de Paris, por exemplo, não seria possível em Maringá. Sim, a cena parodia um ato violento – a condenação à guilhotina –, mas usa a alegoria da violência e outros simbolismos para se referir e criticar as opressões direcionadas à classe trabalhadora / pobre da França do século XVIII. Sim, a cena foi garantida com o uso de recursos públicos e patrocínios privados.


Uma rainha branca, e com a cabeça guilhotinada, para apontar que a dinâmica da colonialidade e da exclusão sempre perde seu lugar na história quando o povo se subleva. Ao que consta, nenhuma criança emergiu do Rio Sena ou das ruas parisienses cortando cabeças ao deus-dará, mas, certamente, milhões de espectadores/as, inclusive no Brasil, tiveram oportunidade de ressignificar a violência social perpetuada pelas elites mundiais. No entanto, para dispositivos como o PL nº 16719/2023, que vetam a liberdade de expressão e escolhem o que é certo e errado com base em juízo moral, somente a bela e aristocrata Maria Antonieta representada por chapéus, fluflus e brioches estaria em evidência como a cultura oficial e apta a receber dinheiro. Nesse tipo de estratégia, o pensamento único se assegura como forma de legitimar o status quo e de calar as manifestações culturais plurais.


Se desejar, estenda a comparação à música periférica que narra o contexto violento e a perseguição policial à população negra, ao livro que denuncia o genocídio indígena e o racismo estrutural, à performance que aborda a violência doméstica ou o assassinato de mulheres, ao teatro de protesto, à parada por direitos LGBTQIAPN+ que visibiliza corpos e afetos outros, ao grafite, ao slam de poesia e outras ações escolhidas como alvo controle Brasil afora... Tudo o que se censura, afinal, é a circulação da diferença!


Disfarçado de “boas intenções”, o PL nº 16719/2023 impõe sérias restrições às ações culturais e aos/às artistas, escritores/as e produtores/as em Maringá, sobretudo, aqueles/as que impulsionaram a cena cultural da cidade nas duas últimas décadas e agregaram grupos minorizados em seus projetos culturais. Além disso, divide a população de forma equivocada quanto ao manifesto de opinião sobre a destinação dos investimentos e do dinheiro público, faz exatamente o contrário do que se propõe, ou seja, estimula ainda mais o preconceito e a exclusão, e recobra a ditadura em termos de perseguição e censura a quem se opõe ao modelo de cultura única.

 

Para Saber mais:


DELCOLLI, Caio; MONTEIRO, Luiza. O que explica a recente onda de censura a livros no Brasil e no mundo? O Globo, 24 fev. 2024. Disponível em: < https://acesse.one/IburE>. Acesso em: 4 ago. 2024.

MOBILE. Mapa da censura. Disponível em: < https://encr.pw/KStBt>. Acesso em: 4 ago. 2024.

MOURA, Eduardo. Vereadores aprovam lei que veta verba pública em espetáculos que 'desvalorizem mulheres' no PR; oposição vê censura. Folha de São Paulo, 31 jul. 2024. Disponível em: <https://acesse.one/63qAl>. Acesso em: 4 ago. 2024.

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Fabiana Carvalho é Bióloga de formação; Mestra em Educação; Doutora em Educação para Ciências; Pós-Doutora em Educação Científica e Tecnológica. Interessa-se por Pesquisas nas Educações para o Corpo, Gênero, Sexualidade e Diferença, considerando os Estudos Feministas e LGBTQIAPN+. Navega pelos territórios da Biologia e suas imbricações com a Cultura, articulando críticas, discussões biológicas e também literárias sobre diversas questões do cotidiano. Colabora com o Canal “Bisbilhoteiro”, assinando textos para a Coluna “Bisbi Diversidade”.

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