Tem gerado algumas perguntas e questionamentos para esta sessão O SEU DIREITO, a recente concessão do serviço público de transporte coletivo no município de Cianorte, com vários leitores perguntando com relação à legalidade nos moldes que o processo da concessão de foi concebido, levado a efeito e concluído.
Não é de meu conhecimento a íntegra de todo o procedimento licitatório do caso em questão, mas vou transcorrer acerca da legislação que autoriza o serviço público de transporte coletivo de passageiros e as violações ao direito dos usuários, sem entrar no mérito do caso de Cianorte, que os articulistas do Bisbilhoteiro e Tá Por Dentro podem fazer com mais propriedade, baseando-se nas premissas legais do certame.
Pois bem, no que tange ao Direito Administrativo propriamente para o caso em questão iniciemos com a citação do professor Hely Lopes Mirelles em seu livro “Direito administrativo brasileiro” que o a Administração Pública deve ter sempre em vista que “serviço público e de utilidade pública são serviços para o público e que os concessionários ou quaisquer outros prestadores de tais serviços são, na feliz expressão de Brandeis, public servants, isto é, criados, servidores do público. O fim precípuo do serviço público ou de utilidade pública, como o próprio nome está a indicar, é servir ao público e, secundariamente, produzir renda a quem o explora”.
Ou seja, as prestações e concessões dos serviços públicos existem, por e pela sociedade. A finalística do serviço público é o atendimento e bem-estar da coletividade, ou seja, dos usuários que usufruem dos benefícios que essas disponibilizam com os impostos que ela (a coletiva) paga. Entretanto, percebe-se que, na contramão dos preceitos constitucionais e legais, a característica do serviço público está deturpada. Nota-se que a lucratividade ou o descaso, seja quando prestados pelo ente público ou por terceiros, atualmente caracterizam os serviços públicos, gerando descontentamento e incômodo àquele que deles necessitam, o cidadão.
Segundo Aristóteles, o ser humano é um animal político, destinado a viver em sociedade. No momento que os indivíduos decidem a viver de forma social as necessidades, que anteriormente seriam individuais, passam a ser coletivas e, consequentemente, ao Poder Público incumbe-se a obrigação de supri-las. Os serviços de atendimento a estas necessidades coletivas e que devem ser prestados são conhecidos por serviços públicos. O conceito deste instituto não é unânime, no entanto alguns pontos são pacíficos e de entendimento semelhante entre os doutrinadores.
A professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em sua “Direito administrativo. 32. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019” conceitua serviço público como “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público”.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 175, caput, apresenta duas formas de particulares executarem serviços públicos. São elas as concessões e as permissões. Ambas se operam por mecanismos contratuais, desenvolvidos e formalizados mediante contrato administrativo ou mesmo por disposições legais. Tais instrumentos regulam a delegação concedida pela Administração Pública (seja Federal, Estadual ou Municipal) ao particular interessado em explorar serviços de utilidade pública.
A concessão é ofertada mediante licitação (sempre, sem exceção), mais complexa e com prazo determinado, e no decorrer da concessão o contrato pode ser ajustado pelo concedente (Poder Público) visando alcançar um contrato equilibrado e uma prestação eficiente.
A Administração Pública, na impossibilidade ou inviabilidade de prestar serviços públicos, mediante prerrogativa Constitucional e infraconstitucional, delega aos particulares por determinados períodos, mediante requisitos específicos, regulando e controlando sua execução. A lei 8987/95 é conhecida como a Lei das Concessões. Nesta se observa conceitos, requisitos do contrato administrativo, direitos e deveres dos cessionários e permissionários e as formas que a Administração Pública deve fiscalizar e punir atitudes contrárias aos objetivos sociais e contratuais.
O artigo 29, inciso I da referida lei, destaca que compete ao poder concedente (ou seja, no caso de Cianorte, por exemplo, a Prefeitura) “regulamentar e fiscalizar” o serviço concedido. A Administração Pública através de instrumentos contratuais e disposições legais, regula à forma de aquisição, execução, administração e remuneração das atividades. Tais disposições devem ser observadas pelo particular durante toda a vigência da autorização podendo em casos de descumprimento ser advertidos e ou penalizados. E, em caso de omissão, a Administração Pública também sofrerá sanções, baseado na improbidade do gestor.
O dever de regulamentar as concessões é inerente e indispensável do Poder Público concedente. Cabe ao Executivo aprovar o regulamento do serviço e determinar a fiscalização de sua execução, pela forma conveniente. A fixação e a alteração de tarifas são também atos administrativos, do âmbito regulamentar do Executivo, não dependendo de lei para sua expedição. Nos poderes de regulamentação e controle se compreende a faculdade de o Poder Público modificar a qualquer tempo o funcionamento do serviço concedido, visando à sua melhoria e aperfeiçoamento técnico (não por conveniência do Chefe do Executivo ou do dono da empresa concessionária, mas sempre no interesse público), assim como a de aplicar penalidades corretivas ao concessionário (multas, intervenção no serviço) e afastá-lo definitivamente da execução (cassação da concessão e rescisão do contrato), uma vez comprovada sua incapacidade moral, financeira ou técnica para executá-lo em condições satisfatórias.
Sob a ótica operacional e prática temos o transporte público ou coletivo de passageiros como um método de transporte desenvolvido para o atendimento as necessidades de deslocamento de grupos de pessoas de determinada região ou localidade. Opera-se mediante tarifas, horários e rotas padronizados e são ofertados ao público geral. São serviços de utilidade pública e trazem fluidez e comodidade aos cidadãos. Podem ser exercidos pela administração pública direta, entretanto é delegado na maioria dos casos por concessão a particulares, como é do caso do munícipio de Cianorte.
Como já abordamos neste espaço, a Carta Magna Brasileira, em seu Titulo II, define os direitos fundamentais individuais e também os coletivos ou sociais. Não são apenas direitos, estes decorrem do princípio da dignidade da pessoa humana e assim constituem-se garantias às quais o Estado é responsável e competente para prove-las à sociedade. O artigo 6º da Constituição Federal de 1988, diz que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Nota-se que o direito ao transporte se encontra inserido no rol dos direitos sociais fundamentais. Todo ser humano tem o direito de ir e vir e o Estado é obrigado a fornecer instrumentos hábeis para que os deslocamentos sejam possíveis e adequados, visando o bem-estar e o desenvolvimento social.
O legislador Constituinte originário entendeu por bem que, embora seja garantida a livre locomoção, o transporte deveria ser também uma segurança ao cidadão a fim de viabilizar o exercício da dignidade humana. Embora direito social, o transporte coletivo público também detém outra característica, descrita no artigo 30, inc. V, da Constituição, que diz que “compete aos municípios organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”. O transporte público coletivo de passageiros, por sua importância econômica e social, é caracterizado como serviço de utilidade pública de caráter essencial.
O poder público concede a concessão ao particular por meio de um contrato. Tal instrumento já possui elementos e requisitos para execução da atividade. Entretanto, conforme a situação social, tecnológica e econômica vai se modificando o cessionário também deve estar se adequando aos interesses e necessidades atuais da comunidade para a qual serve. A administração pública é responsável constitucionalmente por acompanhar as mudanças que ocorrem durante o prazo da concessão e proceder aos atos necessários para adequação do contrato. Sejam exigências para melhoria técnica, seja para redução de valores e tarifas seja meios para otimização das atividades, cabem ao município (no caso de Cianorte) o acompanhamento e regulação, portanto, a responsabilidade do fazer cumprir.
Com uma espécie de “fiador” do serviço concedido, cabe ao Poder Público concedente fiscalizar a regularidade e boa execução do perante os usuários, sob pena de crime de responsabilidade do Chefe do Executivo. É dever do concedente exigir sua prestação em caráter geral, permanente, regular, eficiente e com tarifas justas. Para assegurar esses requisitos, indispensáveis em todo serviço concedido, reconhece-se à Administração Pública o direito de fiscalizar as empresas, com amplos poderes de verificação de sua administração, contabilidade, recursos técnicos, econômicos e financeiros, principalmente para conhecer a rentabilidade do serviço, fixar as tarifas justas e punir as infrações regulamentares e contratuais, e claro, o cidadão, cumprindo o se dever e exercendo o seu direito, é o principal fiscalizador de todos esse processo.
Pois bem, a relação do cidadão com a empresa concessionária tem outra aplicação. As relações de consumi em geral são parte significativa das relações sociais de forma que o legislador, em cumprimento ao dispositivo constitucional do artigo 5º inciso XXXII, promulgou a Lei nº 8.078 de 1990, popularmente conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC). Dois conceitos são extremamente importantes para determinação da relação jurídica e consequentemente seus efeitos legais nas relações entre usuário e prestador de serviço público de transporte de passageiros, a definição da figura do fornecedor e do consumidor. Conforme o artigo 2º do CDC , consumiodor “é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”.
Por sua vez, o artigo 3º, também do CDC, define fornecedor como “ toda pessoa física ou jurídica (…) que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.
É pertinente para a discursão acerca dos cessionários do serviço publico de transporte de passageiros, entender também a definição de “serviço”. Novamente, recorrendo ao mesmo artigo 3º em seu parágrafo 2º temos que serviço é qualquer atividade fornecida e os cessionários de serviço público coletivo de passageiros prestam serviços de mobilidade aos usuários que em contraprestação os remunera mediante o pagamento de tarifas. Partindo dos conceitos acima, podemos qualificar o empresário que oferta o transporte público de passageiros como fornecedor de serviços e os usuários como consumidores, de forma que a relação existente entre eles é consumerista, estando sujeita também às normas do CDC.
Os cessionários dos serviços de transporte público, como fornecedores, estão sujeitos às diversas obrigações e sanções determinadas pelo ordenamento jurídico. É importante destacar que o artigo 175, paragrafo único, inc. IV da Constituição Federal impõe como obrigação do cessionário de serviço público a prestação de serviço adequado. O capítulo II e III da Lei 8.987/98 reafirma o dispositivo constitucional e versa sobre o que viria ser serviço adequado, precisamente no art. 6º paragrafo 1º, definindo-o como “o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”.
Extrai-se dos ensinamentos do professor Celso Antônio Bandeira de Melo em seu livro “Curso de direito administrativo. 32. ed. – São Paulo: Malheiros, 2014” que a regularidade e continuidade dos serviços públicos decorrem da essencialidade do serviço. Devendo esse se operar conforme as determinações e regras legais e em conformidade com a oferta apresentada aos usuários. Ainda, o serviço não pode ser interrompido, devendo ser contínuo ante sua importância social e para fluidez econômica. A eficiência é a qualidade de o serviço ser útil, alcançar a finalidade determinada de forma satisfatória. Visando a segurança devem ser empregados técnicas e meios efetivos para preservação e cuidado dos bens jurídicos sob a responsabilidade do prestador como integridade física e psicológica, proteção patrimonial e econômica dos usuários. Deverá o prestador acompanhar as atualidades buscando novas tecnologias e adaptando a prestação as necessidades da sociedade conforme suas mutações. Em relação à generalidade, cortesia e modicidade, o acesso ao serviço deve ser possível a todos, sem distinção, sendo módico ou economicamente possível permitindo que os menos favorecidos sejam atendidos devendo o atendimento ser cortês garantindo ao usuário o bem-estar, respeito e dignidade.
Por fim, toda sociedade necessita de prestações em conjunto para desenvolvimento social e econômico. Tais prestações devem ser oferecidas pelo Estado visando à satisfação dos cidadãos dando melhores condições de existência e dignidade a esses. Para isso, o sistema legal nacional possui diversos dispositivos de organização, regulação e fiscalização de execução direta ou concessão dos serviços públicos ou de utilidade pública.
Percebe-se que há uma preocupação jurídica considerável para um fornecimento de um serviço adequado, igualitário e acessível, sendo estes valores a base do sistema de concessões e permissões. Tais valores expressam também os preceitos constitucionais. No entanto nota-se que violações existem, e más prestações e desvios de finalidades maculam os serviços públicos. Entretanto, o Estado de forma obrigacional deve exercer seu poder de fiscalização e regulação, advertindo, corrigindo e punindo os prestadores de serviços públicos que não os executam conforme os padrões de excelência e moralidade.
Na próxima edição, vou abordar neste espaço a irregularidade cometida por condomínio de apartamento de Maringá, que, sem autorização da SANEPAR, efetuou ligação clandestina de esgoto, invadindo terreno vizinho. Serão demonstrados os aspectos legais e os fatos através de processos judiciais que discutiram o assunto. Matéria de interesse da população do Paraná como um todo.
Exija seus direitos, fiscalize os atos da administração pública de sua cidade e cumpra com os seus deveres de cidadão.
Estou à disposição para qualquer dúvida ou esclarecimento através do e-mail e whatsapp abaixo.
*José Marcos Baddini é Jornalista,, Gestor Público pós-graduado em Direito Público, Constitucional, Administrativo e Tributário. É servidor público do Poder Judiciário da União, atuando na Justiça do Trabalho de Maringá-PR.
E-mail: jm-baddini@hotmail.com
WhatsApp: 44 98868-6319.
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