A sacada do meu quarto é uma área improdutiva. Ela não cumpre sua função social. Culpa dela? Não! Obviamente a culpa é minha, pois não exploro todas as possibilidades que esse espaço oferece. Raramente abro a porta de correr que separa a sacada da minha suíte e, por isso, ela não confere iluminação natural e nem ajuda na circulação do ar. Opto, sempre, por ligar o ar condicionado. Quase não contemplo a vista e sequer uso a sacada para observar os prédios vizinhos, ler um livro ou mesmo para relaxar numa cadeira confortável. Fico longe da vitamina D que a sacada pode me oferecer. Prefiro as pílulas. Reconheço que são péssimas escolhas, para mim e para o meio ambiente. Sei, também, que meus maus hábitos são muito comuns na vida dos trabalhadores que vivem amontoados nos prédios dos centros urbanos.
Por esse relato, caro leitor, dá para perceber que não foi à toa que minha sacada foi declarada ociosa. Essa sentença não foi proferida pelo poder público do município onde moro, mas sim, pelo movimento Frente de Luta por Moradia dos Pombos sem-teto (FLMP). Os pombos sem-teto tornaram pública uma carta na qual relataram como se deu a constatação do abandono da sacada, bem como reivindicaram a desapropriação. Ardilosamente, não informaram que já haviam ocupado a área, antes mesmo da autorização legal.
Segundo relataram, tudo começou há cerca de seis meses. Primeiro, eles enviaram para a minha rua "pombos olheiros" para procurar áreas cobertas ociosas que pudessem servir-lhes de moradia. Nessa fase, eu até observei, algumas vezes, da janela do quarto do meu filho, vôos rasantes de pombos solitários na frente do meu apartamento. Supus que eles estavam em busca de alimento. Que engano. Depois dessa fase da observação, os "olheiros" transmitiram as informações sobre a minha sacada, e seus não usos, para o grupo de pombos encarregado das ocupações. Foi assim, como vingadores da natureza, que vários pombos iniciaram uma verdadeira saga para se apropriarem da sacada do meu quarto. Primeiro, notei a presença dos invasores pelo som dos arrulhos. Especialmente à noite eu ouvia: grou, grou! gru, ru, gru ru! ru lu! Repetidamente: grou, grou! gru, ru, gru ru! ru lu! Não bastassem os arrulhos, logo os pombos começaram a usar sua arma mais temida, o cocô. Isso mesmo, fezes e não fuzis. Os pombos "atiram" seus dejetos, aos montes, nos locais que ocupam. Eles cagam no mundo. Aliás, esse é um dos maiores problemas da presença de pombos nas cidades. Eles infestam, com suas fezes - que podem transmitir doenças, as ruas, as calçadas, as varandas e quaisquer outros lugares de seu interesse.
Bem, além do meu evidente pouco caso para com a sacada, na decisão dos pombos de ocupá-la também pesou certo costume de minha família, praticado nos anos 1970. Meu pai, munido de espingarda de pressão ou até de uma cartucheira, ia para as cercanias da cidade, caçava e abatia pombos e rolinhas para, depois, nos fartarmos com os acepipes fritos. Apesar de ser um hábito comum à época, não me orgulho nem um pouco dessas façanhas. Papai, inclusive, chegou a ensinar a caça ao pombo para suas filhas. Eu nunca pratiquei o delito, mas era cúmplice do meu pai no abate dessas aves e, ainda, as comia com prazer.
O costume de comer a carne dos pombos era corriqueiro naqueles anos. Aliás, quando essas aves foram trazidas para o Brasil, pelos portugueses, no século XVI, o objetivo era o de que elas servissem de alimento. Atualmente, ainda se come carne de pombo em alguns lugares. Entretanto, são pombos criados em cativeiro, imunes às sujeiras dos centros urbanos e alimentados adequadamente. Em geral, a miséria ou a guerra são fatores que podem levar certas populações a optar por essa específica proteína. Comunidades pobres do nordeste do Brasil e moradores da cidade ocupada de Mariupol, na Ucrânia, estão sendo forçados a caçar pombos para se alimentarem.
Acredito, que na década de 1970, o hábito de caçar, matar e comer pombos ainda era praticado porque não havia uma legislação mais definida sobre crime ambiental e também porque os pombos ainda não tinham se constituído em pragas urbanas, que sujam de fezes cidades inteiras e ainda podem transmitir doenças. Nessa época os pombos ainda habitavam as cercanias das cidades. Hoje, habitam os centros urbanos, aos quais se adaptaram facilmente, pois não há predadores para a sua espécie.
Voltando ao relato sobre a saga dos pombos. Quando identifiquei a invasão dos pombos, tentei vários métodos para afugentá-los. Eu sabia que não adiantaria bater palmas e gritar "xô pombo". Seria ridículo, ineficiente e, com certeza, os pombos ririam de mim. No afã de expulsá-los, usei espuma repelente de pombos, espalhei naftalina, pendurei CDs para ofuscar sua visão e instalei um repelente sonoro. Nada funcionou. No desespero, cheguei a usar meu desafinado canto para incomodá-los. Fracassei em tudo que fiz, diria Fernando Pessoa. Os pombos continuaram firmes no seu propósito de habitar a sacada e, particularmente, aconchegarem-se no quentinho do ar condicionado. Defecavam de manhã, à tarde e à noite. Que transtorno!
Como já disse, paralelamente à ocupação da minha sacada, o movimento FLMP elaborou a carta que citei, rogando a garantia do direito à moradia dos pombos sem-teto. Dirigiram a missiva aos "homens e mulheres de bem" e afirmaram o jargão "Nenhum pombo sem casa, nenhuma família de pombos nos fios dos postes". Reforçaram a luta pelo fim dos "despejos" (afugentamentos) e por políticas públicas de manejo e controle da expansão da sua espécie. Nessa carta, solicitaram a desapropriação da minha sacada, sem indenização à "injusta proprietária". Os pombos sem-teto alegaram que, por não serem aves raras e nobres, sempre são desqualificados. São gerações sucessivas de pombos condenados a moradias inóspitas ou às ruas. Frente a este cenário catastrófico para as vidas dos pombos, eles resolveram correr atrás de seu direito por moradia digna. Por isso, eles ocupam imóveis abandonados. A mobilização desses pombos era, também, uma denúncia ao descaso do poder público e dos injustos proprietários de imóveis que preferem acumular capital do que dividir o que possuem. Os pombos sem-teto não aguentam mais tanta insensibilidade e injustiça. Disseram, na carta, "chega de morar nas ruas, nos fios de postes, ao relento, passando frio e tomando chuva".
Confesso que cheguei a ficar comovida com a carta, mas ela chegou tarde às minhas mãos. Eu já tinha contratado uma empresa para colocar uma tela protetora na sacada. Além disso, a prefeitura não autorizou a desapropriação e nem a ocupação da sacada.
Tristes, eles foram embora. Às vezes vejo um ou outro dando rasante nos arredores. Os pombos sem-teto estavam apenas reivindicando um espaço na cidade. Como nós, o tempo todo. E eu, aqui, lembrando de uma canção do Zé Geraldo, de 1981, chamada "Milho aos Pombos"
"Entra ano, sai ano, cada vez fica mais difícil. O pão, o arroz, o feijão, o aluguel. Tiro ao homem tiro ao pombo. Quanto mais alto voam, maior o tombo. Eu já nem sei o que mata mais. Se o trânsito, a fome ou a guerra. Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça, dando milho aos pombos."
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