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A arte não tem preço. E as escolhas públicas, tem?

Foto do escritor: Cel. Elias Ariel de SouzaCel. Elias Ariel de Souza

Atualizado: 26 de abr. de 2024

Desde a conclusão do painel em pintura de autoria do artista Kobra como parte dos eventos de inauguração da nova Praça da República de Cianorte e toda a controvérsia gerada, muitos amigos pediram minha manifestação. Preferi esperar algum tempo para entender como o Executivo municipal esclareceria esta escolha em todos os seus aspectos controversos. De tudo que acompanhei nestes últimos dias, acredito que já posso emitir algumas análises.


O início


O painel artístico concluído no último dia 17 de agosto com certeza foi desejado muito antecipadamente, todavia, é impossível dizer desde quando sem perguntar diretamente a quem o desejou. De outro lado, a documentação inicial revela de alguma forma quando oficialmente se pensou em realiza-lo. Falo do Ofício nº 224 do Gabinete do Prefeito datado de 29 de maio de 2023 que encaminha ao Presidente da Câmara Municipal Projeto de Lei nº 33 de 2023 que solicita autorização para o executivo abrir crédito especial adicional no valor de R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais) com fins de contratar empresa especializada para execução de obra de arte no referido painel.


Eis então que em maio a ideia tomou contornos oficiais, mas, não prosperou, pois, sequer a Câmara deu tramitação a proposta.

Imagem: Painel Grafitado pelo artista Kobra em Cianorte/PR, 27m2 de área grafitada.


Alguns detalhes jurídicos inicias


Vejam, juridicamente o Executivo solicitou a Câmara autorização para tal crédito excepcional e especial porque de fato este gasto nunca constou no orçamento, na lei orçamentaria anual que guia, regula e limita os gastos públicos, portanto, necessário que o legislativo autorizasse.


Para tanto, o Executivo teve de apontar a fonte, de onde viria o dinheiro, os 250 mil reais. Bem, no mesmo documento, no Projeto de Lei nº 33, o Executivo esclarece que este valor viria de anulação parcial de igual importância de dotações diversas do orçamento vigente, manobra legal e permitida. Significa que se retiraria dinheiro existente no orçamento de diversas pastas para juntar os tais 250 mil reais. E assim foram indicadas fontes de diversos locais da própria administração, uma espécie de “vaquinha” administrativa de recursos orçamentários.


Como dissemos, esta manobra é legal, ainda que seu objetivo e prioridade possam ser questionáveis. A mim, fica claro também que o Executivo pretendia licitar a execução do painel, obter a autorização para crédito e abrir certame licitatório para contratar empresa especializada como o próprio PL nº 33 esclarece, todavia, a Câmara não tramitou, não deu a autorização.


Bem, se a Câmara não embarcou o que fazer então? Ora, simples, o Executivo frustrado pela negativa recebida, utilizou-se da própria permissão legal na modalidade conhecida como inexigibilidade de licitação em função do conteúdo artístico da obra. Se não se pode licitar, como me parece se pretendia no PL nº 33, então vai-se por outro caminho sem licitação, uma manobra jurídica e administrativa também permitida neste caso, mas, questionável pois a Câmara que representa o interesse do povo já tinha dito não quando não deu tramitação.

A estranha primeira inflação


Como esclarecemos na análise da própria documentação enviada pelo Executivo à Câmara em maio, a autorização seria de 250 mil reais com fins de contratação de empresa para realizar o painel, ou seja, de alguma forma a administração pesquisou preços e entendeu que este valor seria suficiente para efeitos de licitação e para que empresas concorressem.


Mas, na medida em que a Câmara não tramitou o PL nº 33, na medida em que não foi autorizado o crédito excepcional e especial, o Executivo partiu para a inexigibilidade e contatou diretamente um artista pagando ao final R$ 287.000,00 (Duzentos e oitenta e sete mil reais). Ou seja, entre maio e agosto, menos de 90 dias, o preço inicial dado pelo próprio Executivo como limite para o gasto de 250 mil reais para contratação de empresa resultou no pagamento direto ao artista em 287 mil reais.


Em menos de noventa dias, em menos de cem metros que separam a Câmara da Prefeitura, um acréscimo de 37 mil reais no valor que o próprio Executivo deu como limite inicial para execução do painel. Uma inflação de 14,8 % do preço inicial pretendido em menos de noventa dias, surpreendente.


A mais estranha segunda inflação


Particularmente comungo da opinião de que não se pode por preço em arte, por certo que não se pode, mas, isso não significa abdicar do bom senso ou do cuidado no gasto público mesmo quando se trata de arte, muito mais quando podemos ter dados comparativos disponíveis.


Esclarecendo. O artista Eduardo Kobra, que de fato se trata de alguém reconhecido no seu meio com obras em diversos locais pelo Brasil e no exterior, paulista dono de um estúdio badalado e de uma equipe de cerca de doze outros artistas, por isso mesmo permitiria comparações de custos em obras anteriores. Por exemplo, em dezembro de 2020 Kobra entregou um painel pintado a pedido da prefeitura de Boa Vista, Roraima.


A obra lá teve como área pintada em 180 metros quadrados a um custo de 400 mil reais. Gerou lá muita controvérsia tal obra inclusive com operação da Promotoria do Patrimônio Público e Policia Civil locais denominada Operação Aquarela, sob a suspeita de superfaturamento na execução e que já se encontrava completamente deteriorada quatro meses após sua inauguração, em abril de 2021, levando o artista a repará-la sem custos.


Ainda que estes desdobramentos em Boa Vista chamem a atenção e deveriam chamar a atenção de todos, aqui nos interessa pensar em números como alguns gostam de dizer. Vejam, ainda que sob suspeita lá em Boa Vista de superfaturamento como se noticiou em 2021, o fato é que foram 180 metros quadrados de obra a um custo de 400 mil reais, vale dizer que o preço pago ao artista lá há dois anos foi na ordem de R$ 2.222 (dois mil duzentos e vinte e dois reais) o metro quadrado pintado, desprezei os centavos.

Imagem: Painel do artista Kobra em Boa Vista - RR, 180m2 de área grafitada.


Bem, continuemos no raciocínio econômico. A obra foi concluída em Boa Vista em 2020, dezembro daquele ano e a de Cianorte em agosto de 2023. Para sermos o mais exato possível devemos considerar a inflação de 2021 e de 2022 para sabermos qual seria o preço do metro quadrado pintado pelo Kobra este ano. Em 2021 a inflação brasileira bateu na casa de 10,1% e a de 2022 em 5,8%, ou seja, poderíamos de forma precária dizer de uma inflação somada e corrigida em dois anos em 16,49%.


Valer dizer que se o Kobra fosse pintar algo semelhante hoje ao que realizou em Boa Vista em 2020, baseado no custo da época com inflação corrigida, o preço de seu metro quadrado seria hoje de R$ 2.588 (Dois mil quinhentos e oitenta e oito reais), desprezei os centavos.


Bem, o painel de Cianorte mede cerca de 27 metros quadrados e custou 287 mil reais, trinta e sete mil mais caro do que inicialmente se pediu, mas, que de qualquer forma revela um custo por metro quadrado pago pelos cianortenses em R$ 10.627 (dez mil seiscentos e vinte e sete reais), desprezei os centavos. Sim, é isso mesmo que você pode concluir, se fosse pago aqui o que se pagou ao artista em Boa Vista por metro quadrado com correção de inflação, o painel cianortense deveria ter custado R$ 69.887 (Sessenta e nove mil oitocentos e oitenta e sete reais).


Arte não tem preço, talvez nem em metros quadrados tenha. Haveria aqueles a dizer que cada obra do artista é exclusiva, de valor exclusivo, não se pode comparar preços de obras porque não são iguais nunca, tudo bem, posso aceitar, mas diante dos números é razoável, é moral? Estamos discutindo um painel de um bom artista, mas, mesmo assim, um painel de um bom artista apenas, sejamos razoáveis na análise. Arte não tem preço, mas bom senso tem, dinheiro público também tem.


Em sã consciência como podemos aceitar pacificamente que um mesmo artista realizando um mesmo tipo de obra, ainda que em temática diferente, possa ter nos custado mais de quatro vezes, mais de quatrocentos por cento de acréscimo em comparação à Boa Vista onde lá já foi considerada em sede de investigação oficial como suspeita num preço por metro quadrado pago quatro vezes menor? Que loucura.


O que justifica Cianorte pagar quatro vezes mais caro? Óbvio que não se trata de por preço em arte, é simples exercício de bom senso, de racionalidade, é uma insanidade quando comparamos. Comparemos, pensemos, é barato de fazer, custa pouco é só usar alguma isenção lógica. Acaso o cálculo comparativo precário que fizemos aqui seria inalcançável ao poder público fazê-lo antes da contratação do artista, seria? Que loucura.


Qual pesa mais?


Para além do dinheiro e da arte


Claro que dinheiro público gasto por entendimento de prioridades ficaria simples e não menos impactante, ainda que em lugar comum, dizer que este painel poderia ter sustentado na ordem de pagamento de aproximadamente 6.800 (seis mil e oitocentas) consultas especializadas que custam ao município cerca de R$ 42,00 a unidade. Ou que representaria mais 1.900 (hum mil e novecentas) cestas básicas de altíssima qualidade, é claro que indigna.


Não se trata somente de gastar, se trata de gastar pela prioridade e, neste sentido, homenagear a própria cidade, cultuar nossa história é importante, mas, por que não se fez diferente? Por que não um concurso artístico local? Por que não promover nossos artistas a um custo lógico, aceitável, moral? Por que não fazer deste espaço um espaço rotativo para os artistas locais, por que não?


Para além disso, sim, a gestão pública está estritamente presa ao que a lei permite, a sua obrigação em relação aos princípios da administração pública que não excludentes entre si, ao contrário, imperativo observar a todos a todo tempo e o tempo todo: Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência, este é o preço em ser público, o custo de dar satisfações sim sobre escolhas públicas. Se o gestor não entende, aceita e respeita isso, está fora de lugar, está no lugar errado.


Significa dizer que toda decisão pública ainda que legal não pode partir de vontades exclusivamente pessoais ou em favor de relações pessoais. Mesmo que legais e impessoais devem ser morais, devem obedecer a um senso ético comum na sociedade, a um padrão aceito entre todos como decente e correto. Se legal, impessoal e moral, deve ser transparente, pública, significa que todos do povo devem saber dos motivos e razões de qualquer decisão sempre e, deve enfim ser eficiente, ou seja, ser produtivo para a maioria das pessoas com o mínimo de desperdício dos recursos públicos.


A mim pessoalmente, ainda espero que se esclareça o porquê não se fez este painel por artistas locais; que se esclareça a diferença de preço inicial proposto pelo Executivo e o preço final pago, e aí a própria Câmara teria de se manifestar; que se esclareça como chegamos enquanto administração admitir um custo quatro vezes maior do mesmo artista e do mesmo tipo de obra quando comparado a um evento absolutamente conhecido e disponível de pesquisa.


Talvez, ao meu juízo, merecesse alguma atenção do Ministério Público do Patrimônio Público em Cianorte para dizer para além da legalidade, mas, da presença imperativa de todos os outros princípios da administração pública nesta decisão, minha opinião.


De qualquer maneira, espero que se esclareça o que a mim me parece absolutamente insano enquanto escolha de política pública sobre qualquer aspecto, ainda que pareça a mim que não entendo muito de arte, todavia, com a máxima vênia, estou pleno em minhas faculdades mentais e entendo um pouco de gestão pública. E a você, o que lhe parece meu amigo?


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